Iberê Camargo para ver e pensar

A mostra Iberê Camargo – Os Meandros da Memória pode ser considerada um corajoso ato de pensar as estratégias armadas por um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos. As diversas fases vividas por ele são reveladas de forma inteligente, intimista e desprovida de qualquer encenação espetacular.

Fragmentos de uma obra gigante, desenvolvida ao longo de décadas, são costurados com delicadeza e inteligência por Jacques Leenhardt, crítico e filósofo francês, que atuou mais como um diretor de cinema colocando cada take (fotograma) em lugar preciso. As 52 obras, harmoniosamente distribuídas, completam-se na busca de uma leitura mais aprofundada da evolução e do recuo de escolhas de Iberê perante as possibilidades artísticas. Leenhardt descarta o conceito de pequena retrospectiva, apesar de alçar voo sobre uma trajetória abrangente que vai desde sua ida a Roma, nos anos 1940 – onde ficou amigo do pintor italiano Giorgio de Chirico, cuja influência se detecta em algumas obras -, até 1980, ano de sua morte.
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Dois momentos diferenciados da montagem dão brilho à exposição. Os Ciclistas, uma analogia entre as rodas de bicicleta e as do trem, símbolo de seu imaginário dos primeiros anos de infância, já que seu pai era ferroviário, e ele entusiasta do trem. Essas imagens cristalizadas em telas testemunham suas idas ao Parque da Redenção, em Porto Alegre, onde observava o vaivém dos ciclistas. Em uma ousadia de montagem, Leenhardt coloca os quadros a 15 cm do chão, criando uma pista imaginária no piso do museu. O contraste das pinturas com os rodapés elevados rouba a cena regada por um jogo de luzes, pensado como uma iluminação cênica. O que seria um mero guarda-corpo criado pelas aberturas nas rampas, se transforma em suporte para receber um conjunto de ciclistas e resulta em um dos achados formais.

Já da série Os Carretéis, que marca algumas dificuldades de Iberê com o mundo externo e a perda da estabilidade para o desequilíbrio, o curador propõe uma linha imaginária no tempo que nos leva a um complexo pensamento em que Iberê enfatiza o papel do manequim, definido por ele como “meio corpo vivo, meio corpo mecânico, entre vida e morte”. Uma parede de autorretratos testemunha a busca de si mesmo, onde Iberê aparece majestoso e muito acima de sua atormentada existência.

A frase da revista Time, ao registrar sua morte, pode sintetizar a sensação que nos fica depois de sair desta mostra: “Iberê expressava a miséria humana de forma impiedosamente honesta”.


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