Inabsência ou a ausência invertida

De qualquer ângulo que se olhe a escultura Inabsência, de Artur Lescher no átrio da Pinacoteca do Estado de São Paulo, nota-se o poder do objeto escultórico dominando a arquitetura, em um ato vertiginoso que desvirgina a atmosfera domesticada do antigo museu da Praça da Luz. O encontro dos metais pontiagudos com os tijolos aparentes, concebidos com uma argamassa, quase orgânica, dá ao ambiente um clima cênico, pela multiplicação dos pontos de vista. A topografia poética de altos e baixos deixa com o espectador a tarefa de organizar a simultaneidade das diversas sensações. Quanto mais nos aproximamos da grande peça, mais ela se circunscreve. O site specific integra o projeto Octógono Arte Contemporânea no qual Lescher cria uma cúpula invertida de 12 m x 14 m, com latão e madeira, materiais recorrentes em sua obra, e que aborda a história da arquitetura da Pinacoteca.

O prédio, de autoria de Ramos de Azevedo, foi executado em 1905 e seu desenho original previa uma cúpula no centro do edifício. Esse átrio, que pode ser considerado o pulmão ou o coração da Pinacoteca, ao longo dos anos sofreu inúmeras transformações. Já foi um pátio aberto, uma arena com arquibancada, onde foram encenados balés e performances experimentais, especialmente nos anos 1980. Hoje, o espaço recebe trabalhos de arte contemporânea dentro do Projeto Octógono.

Dessa vez, Lescher quis contrapor o projeto de Ramos de Azevedo, não concluído, com um dispositivo escultórico de forma circular, a majestosa cúpula imaginada por Ramos de Azevedo. Com isso, também estabeleceu diálogo com a intervenção do restauro arquitetônico de Paulo Mendes da Rocha, que respeitou o projeto original nunca finalizado.

Tempo, ação e lugar são o trinômio que parece balizar a imensa peça que se ergue poderosa no centro do átrio, cujos tentáculos articulam-se em torno do eixo central. Mais do que um objeto tridimensional, a peça funciona como um quebra-cabeça para se compreender o significado do projeto de Azevedo. O espectador é capturado entre dois mundos, um real e outro do que deveria ser. O elemento metal ajuda a reforçar o efeito icônico da peça e seus raios geram linhas de fuga que projetam a composição no espaço. A proposta de Lescher é manter o nível do discurso arquitetônico, respeitando-o ao máximo em suas buscas para escapar do espaço representativo. É o relato de uma ação como signo de uma lembrança, de um pensamento de como espacializar o vazio. O problema não se resume no que se vê, mas no que se deveria ver, de modo que a fórmula de descrição é ao mesmo tempo um gesto de descobrimento. Com isso, Lescher promove um espetáculo mediante a ramificação dos espaços e retoma outras questões que já havia colocado em outras obras ou site specifics como esse. Sua obra se apoia, em grande parte, na melhor tradição do construtivismo brasileiro e traz referências acumulativas no trato com o volume e espaço. A limpeza formal é um de seus traços marcantes e assegura o controle rigoroso de seus planos.

Em projetos anteriores, Lescher já se enveredou por experiências mais radicais e efêmeras, como aquela em que construiu um muro de sal que, ao ser desgastado pelo vento e pela intempérie, promoveu um discurso arqueológico sobre o efeito de deslocamentos, substituições, em um processo aberto de caráter inacabado.

Nos objetos de pequenas dimensões, o artista traz a autonomia das regras próprias, com técnicas que mostram um apuro artesanal sistemático, com continuidades ininterruptas, alicerçados no domínio do material, especialmente no da madeira.

Com Inabsência, Lescher nos envolve em um clima de desagregação com argumento da ausência, do não acabado. Tudo muito pertinente e muito pouco discutido ao longo da história desse importante exemplar arquitetônico paulistano.


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