Tendo por título a expressão Incerteza Viva, a 32a Bienal de São Paulo propõe tomar a noção do que é incerto como principal articulador conceitual da mostra. Uma estratégia, certamente, de buscar aferir um sentimento de inquietude sobre o estado do mundo a partir de um coro diverso de produções artísticas. A ideia de incerteza traz também implícita, porém, uma temporalidade que a ativa de modo singular. Não tanto voltada para o que já se passou, mesmo que sempre persistam controvérsias sobre as razões e as implicações de fatos acontecidos. Uma temporalidade que remete mais ao que está por vir, ao que pode acontecer um dia. A incerteza habita, principalmente, o futuro.
São muitas as disciplinas que já buscaram refletir sobre a natureza imprecisa desse tempo que ainda vem. Afinal, qualquer decisão tomada no presente tem um impacto no depois, seja ele próximo, seja distante. E uma das mais originais formulações sobre esse fenômeno é a feita, na década de 1930, pelo economista inglês John Maynard Keynes, que foi, talvez não por acaso, um grande incentivador das artes. Entre as questões que mais mobilizaram Keynes àquela época estava investigar os mecanismos que animam as decisões empresariais de investir, de modo a gerar emprego e renda sustentadamente. Decisões que são tomadas em função de expectativas de ganho em um futuro que é, argumentava ele, radicalmente incerto; um futuro sobre o qual simplesmente nada se pode saber com segurança. E a principal causa dessa incerteza radical seria o mero fato de cada decisão tomada alterar, individual e irrevogavelmente, o ambiente em que foi gestada, tornando-o incomparável com aquele que existia antes. Nesse contexto mutante, não há maneira de acumular repertório que ajude a conhecer, antecipadamente, o que pode resultar de cada decisão assumida.
Isso não impede, contudo, que mesmo em ambientes marcados por tamanha incerteza decisões sejam o tempo todo levadas a cabo. Para contornar sua ignorância, diz Keynes, os empresários observam, primeiramente, o que ocorreu no passado recente – mesmo sabendo ser conhecimento insuficiente e falho –, posto que é o único indicador disponível daquilo que pode vir a acontecer no futuro. Somam a isso, entretanto, sua capacidade de imaginar situações distintas e que ainda não existem, aplacando, assim, o sentimento incômodo de que formulam expectativas sobre um futuro que é radicalmente desconhecido. E é baseado nessa mistura imprecisa de sugestões e invenções que fazem suas escolhas, as quais são, por isso, inerentemente especulativas: quanto mais estável possa parecer o ambiente presente, mais confiança é posta no passado como guia; quanto mais conturbado ele se aparentar, mais espaço existe para o poder da imaginação se impor como condutor de atos.
Ao longo das décadas, as ciências econômicas gradualmente abandonaram essa rica proposição conceitual de Keynes, criando tecnologias de registro e análise estatística de fatos que supostamente tornariam as expectativas sobre o futuro mais racionais e seguras. A crise financeira mundial de 2008, em meio a outras menores de antes e de depois, pôs em xeque, contudo, a ambição de eliminar a radical incerteza que é constitutiva do mundo capitalista, abrindo espaço, uma vez mais, para o papel que a imaginação de futuros possíveis pode desempenhar em processos de tomada de decisões.
É nesse contexto que a produção artística pode, talvez, ser pensada como paradigma de atuação em um mundo desconfiado de si mesmo; desconfiado de sua capacidade de antecipar com segurança um futuro que não repete mecanicamente o passado. Essa sugestão só se sustenta, porém, se também a arte for pensada fora dos contornos precisos de entendimento com que, muitas vezes, se quer aprisioná-la. Se for pensada não como aquilo que confirma, no campo do sensível, o que já é conhecido e acordado. Ou que se contenta somente em ser mais uma mercadoria a ser transformada em riqueza patrimonial. Mas, ao contrário, se for tomada como algo que deseduca os sentidos e que permite entender, de modo novo, algo que se supunha ser conhecimento estável.
Conceber a arte dessa maneira é entender que ela possui capacidades para rearranjar, no âmbito do simbólico, imagens, gestos e ideias que configuram um estado de coisas tomado como universal ou permanente, quando é somente dominante. É entender que ela pode se descolar do que o passado ensina e o presente confirma e propor novos acordos sobre o que pode ou não pode ser visto ou dito em sociedade dali por diante. Longe de ser imobilizadora, a noção de incerteza radical sobre
o futuro convoca e legitima a imaginação como modelo de racionalidade a ser seguido. Permite, por conseguinte, o desmanche de fronteiras entre o que é tido como arte e o que seria próprio do campo disciplinar da economia. Talvez como Keynes tenha intimamente desejado um dia.
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