A partir de 1999, no limiar do século XXI, Nelson Leirner constrói uma nova equação temporal para suas obras: escreverá sempre o ano 1999 + outro número somado. Como uma conta nova. Com essa identificação estarão todas as obras mais contemporâneas do artista, e assim se registra também a mostra do SESI-SP que celebra seu jogo com os tempos. Pois aos 50 anos de sua irrevocável prática artística (2011-1961) ligam-se os próximos 80 anos de intensa biografia, atravessados por obras emblemáticas, até chegar ao ano 2011, de plena atividade. Algo desse tônico epocal, ou energia espiritual, pode ser explicado pelas características irônicas, paródicas, humorísticas que tem a sua poética irreverente, que vai além da contestação (ou do escândalo, se for o caso) e se aproxima do jogo. O do hobby, como explicita Um, nenhum, cem mil (2011), obra de 10 anos de interferências dessacralizadoras em todo tipo de imagem (e de função mediatizada). Esta virtude brincalhona e crítica com diversas instâncias (a moral da arte, a política da vida, o sistema sociocultural ou a visualidade reinante), oxigena sua obra de outros malefícios estéticos mais corporativos.
De fato, poucos artistas, internacionalmente, estão impregnados desta ironia crítica, quase militante, contínua. Ela atravessa, estruturalmente, o corpus de uma obra já dilatada, que tem numerosos ápices (Adoração, 1966, ou Rebelião dos animais, 1973), mas que nas últimas duas décadas ganhou maior visibilidade, produção e, como resultado, uma iconografia ampliada, reconhecida além-fronteiras. Aliás, na cartografia visual do artista paulistano que mora no Rio, é fácil encontrar trabalhos de uma exata resolução imagética: obras-ícones, absolutamente sintéticas. Emblemas visuais de nossa contemporaneidade paradoxal, onde também o local/global não deixa de manter seu ruído, sua instigante fricção. Neste sentido, são notórias as homenagens-releituras a ícones da arte que viraram cultura (registros de menor intensidade). Todo o itinerário do artista está pautado por essa corda esticada que une arte e cultura, cultura popular e erudita, universo mediático e imaginário conceitual. E suas obras de apropriação – assemblage, desvio com claros referentes – participam desta idiossincrasia alegórica (de re-imagens): sejam as frestas com zíper em Homenagem a Fontana (1967), podendo repetir a operação de abertura da fenda numerosas vezes; os famosos ready-mades, onde o urinário de R. Mutt/Duchamp se metamorfoseia em várias fontes-mangueiras com irrigação própria; ou a roda em um triciclo de sua propaganda – uma duchampiana divertida, que recupera o instinto primigênio, contestador, do artista francês, mas colocado no contaminado dia de hoje, naquela divisa de Jean-Luc Godard que designava a arte como exceção e a cultura como regra.
O campo conturbado da cena artística (institucional, mercadológico, público) sempre recebeu de Leirner obras-análises, ações-testes, que, no meio da controversia, atingiram cotas surpreendentes de interação, resposta, reação, em todos os sentidos – ainda mais quando o artista ficou fora do mercado, durante décadas a fio. Sua coleção de Sotheby’s, 1994-2006, com objetos/figuras (bestiário) desvirtuando a ideologia hegemônica da revista de leilões, continua sendo uma obra-paradigma. Mostra desse embate foram o envio de um porco empalhado para o IV Salão de Brasília (1967), para testar o território da crítica, a função da legitimação como um happening, ou as atividades experimentais da galeria Rex, de São Paulo (com Wesley Duke Lee, Geraldo de Barros, José Resende, entre outros), onde se colocou à prova a relação com o público e com o mercado; as pessoas convidadas a levar obras da mostra de fechamento também destroem o espaço, sendo o corolário de algumas experiências negativas na ferida entre público-artista. Os diversos casos destas práticas controversas (Bandeiras na Praça, 1967, Plásticos, 1970) já fazem parte da arte brasileira, mas mostram o território táctico do artista, de procurar os limites das coisas – seu lado instável, via uma construção fabuladora.
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Os novos trabalhos sempre apuram esse limiar em que simbologia, uso, imaginário, valor e percepção fazem sua combinatória semântica explosiva. Fruto do grau de familiaridade e justaposição de signos, objetos, imaginários da cultura visual de nossa época, a grande parada imagética de Leirner tem muito de celebração, e até de fair play (os numerosos estádios e esportes incluídos assinalam essa direção: esporte é cultura). E tal condição oferece a seu trabalho um perfil sedutor, próximo, contaminado (multiculturalista avant la lettre), pois ele amplia a audiência, sem escrúpulos classistas. É um caráter pioneiro na hora de enfatizar a trajetória de uma obra numa paisagem mais ampla, sociocultural, e numa tríade de formas, signos e imagens.
A dialética arte-não arte, em Leirner, é continuamente cruzada, faz parte do jogo. E o xeque-mate visual que habita em suas “construções” produz outras coordenadas de sentido (os contornos de América Latina e das caravelas feitas com latas de Coca-Cola é entrar numa determinada guerra das imagens). Como os seus últimos mapas e globos (cheios de adesivos culturais, mediáticos) colocam a geopolítica em parafuso: é outra cartografia falando.
Toda a obra de Nelson Leirner se reafirma como desmistificadora. Sobretudo, de instâncias de poder, de ideologias maiúsculas. E isso permite a entrada de obras que respiram mundo, ar, numa imagoesfera neoliberal estetizada tão complacente como perversa (“A arte virou produto”, Leirner diz). O seu reconhecido lado iconoclasta não é, portanto, para crentes de qualquer espécie e sim para quem coloca o conhecimento/percepção/ideário em clara suspeita (Construtivismo Rural, 1999, com geometrias em couro de boi, gerou irritações no incensado credo neoconcreto). Qualquer trabalho seu tem um bastidor ativado (raízes, conexões, contextos, como balas perdidas a esmo, ou quase). Daí que não haja nada inocente à vista, ou talvez sim, mas seja outra inocência, longe do universo naïf, e perto de outra idade sem cronos.
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