“Estar seguro é assustador”, escreveu em inglês a artista Banu Cennetoglu, onde até então se lia Fridericianum na fachada do primeiro museu público da história, inaugurado em 1779, e que desde 1955 é a sede da Documenta. A expressão dá o tom da 14ª edição da mostra, organizada a cada cinco anos em Kassel, na Alemanha, também conhecida por ser a cidade onde viveram os irmãos Grimm que, aliás, trabalharam como bibliotecários no Fridericianum.
O gesto de tirar o nome do museu e em seu lugar apontar a necessidade do risco transforma-se em mote de Learning from Athens (aprendendo com Atenas), o título de trabalho desta documenta. Em tempos de globalização e espetacularização, este é um projeto onde cada gesto, por menor que seja, tem valor de fato e a prática artística não pode ser excluída dele. É como tirar a catraca da Bienal de São Paulo, o que foi feito em sua 31a. edição, ou banir logomarcas das roupas de monitores, afinal arte não pode ser confundida com publicidade.
Essa questão ética na documenta 14 se revela de forma efetiva já na própria destinação do Fridericianum, o seu centro gravitacional. Pela primeira vez em sua história, o museu é tomado por uma mostra organizada por outra instituição, sendo cedido para receber obras do Museu Nacional de Arte Contemporânea da Grécia (EMST). Com esse gesto, Adam Szymczyk, o diretor geral da documenta 14, aponta que a divisão do evento em dois atos, o primeiro com a inauguração da mostra em Atenas, dois meses antes de Kassel, com a mesma quantidade de artistas, não foi mera ocupação germânica na capital grega.
Enquanto a documenta 14 inaugura o prédio do EMST, em Atenas, o Fridericianum dá visibilidade ao acervo do novo museu, que tem na produção grega seu foco. Com curadoria de Katerina Koskina, Antidoros (contrapartida), a exposição revela uma coleção potente e ainda dialoga com a história do Fridericianum, que também serviu como parlamento – o primeiro na Alemanha – em um breve período, entre 1810 e 1813, durante a expansão napoleônica na Europa.
Por isso, muitas obras lá abordam os entraves da democracia, sentidos na Grécia especialmente durante o período de ditadura militar, entre 1967 e 1974, época de expansão da arte conceitual. Uma das obras mais impactantes na mostra e que atravessa essa época é Precarious Archive (arquivo precário), de Stefanos Tsivopoulos. Trata-se de um projeto de longa duração, que reúne imagens coletadas entre 1963 e 2002 em arquivos de jornais, buscando criar um reflexo da sociedade grega, que pode ser manipulado pelos visitantes e visto em projetores.
Além da grande quantidade de obras gregas, a mostra reúne nomes internacionais como o albanês Andreas Lolis, com esculturas em mármores que parecem isopor e papelão usados em abrigos de mendigos, o sul-africano Kendell Geers, com Acropolis Redux, instalação constituída por grades de proteção, e Gary Hill, na videoinstalação Wall Piece, onde o artista constantemente é visto se chocando contra uma parede, sentimento que muitos brasileiros andam compartilhando.
Ainda no Fridericianum, na rotunda, que é seu espaço mais nobre, está a versão de Kassel do Parlamento dos Corpos, a seção destinada aos programas públicos da documenta, a cargo de Paul Preciado. Aí novamente vê-se a relevância do gesto como fator simbólico importante, ao se destinar o espaço central do museu como uma espécie de ágora, reforçando assim a importância do diálogo e da fala como parte da exposição. Com isso, aponta-se a variedade de possibilidades da prática artística, evitando-se o objeto como expressão central.
Essa atitude antimonumental na documenta 14 tem poucas exceções, entre elas o Parthenon de Livros, da argentina Marta Minujín, que remonta em Kassel seu projeto, realizado em 1983, de utilizar 25 mil livros proibidos pela ditadura militar em seu país para construir uma réplica do Parthenon, a construção grega usada como símbolo da democracia. Na cidade alemã, estão sendo usados cem mil livros banidos de todas as partes do planeta. Esta será a imagem marcante dessa edição, um sinal do colapso das democracias em todo mundo, questão abordada tanta em Atenas quanto em Kassel de forma sistemática.
Ética do espaço
O programa expositivo na cidade alemã segue o que se viu em Atenas: os locais de exibição determinam os conteúdos das mostras, em diálogos às vezes inesperados, como o que ocorre no Museum für Sepulkralkultur, o Museu da Cultura do Sepulcro, uma instituição dedicada a exibir as diferentes formas de enterrar os mortos. Pois lá está um dos módulos dedicados à performance, o que faz todo sentido, já que a essência dessa linguagem se constitui de rituais e as distintas formas de encarar a morte não deixam de ser rituais. Assim, nesse espaço há desde uma pequena mostra em vídeo denominada Exhibition for a Single Body a projetos de cenário e desenhos homoeróticos do artista grego Yannis Tsarouchis (1910 – 1989).
Outro desses diálogos inusitados acontece no Grimmwelt, um museu dedicado ao universo dos irmãos Grimm. Lá, está a produção de Tom Seidmann-Freud (1892 – 1930), sobrinha do pai da psicanálise, que nasceu Martha Gertudre-Freud, aos 15 anos mudou seu nome para Tom, e assim chancelou toda sua produção como editora de livros, escritora e ilustradora, chegando a desenhar fábulas reunidas pelos Grimm em estilo modernista. Nessa instituição estão ainda trabalhos que abordam a linguagem, como o vídeo de Susan Hiller, sobre línguas em extinção.
A relação com o local também é intensa no Palais Bellevue, um dos poucos edifícios que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, concebido originalmente como observatório astronômico e primeiro lar de Jérôme Bonaparte, como rei da Westphalia, durante a expansão francesa de Napoleão Bonaparte. A questão estrutural das guerras, Kassel foi o centro de produção de artigos militares durante a Guerra e ainda hoje é o maior fabricante de tanques de guerra, apesar deles serem proibidos de circular no país, é lembrada pela videoinstalação La sombra, da guatemalteca Regina Jose Galindo. Nela, a artista aparece correndo de um tanque, no que deve ser um dos campos de treino do equipamento.
Por outro lado, outras obras no Palais abordam a relação com a natureza e as florestas, afinal de lá se tem uma espantosa vista da região. Um dos trabalhos que abordam essa temática é o do colombiano Abel Rodrígues, índio da região Cahuinari, que é visto em desenhos delicados da floresta, realizados a partir do aprendizado como herança da família, mas também auxiliando pesquisadores. Rodrígues recusa-se que seu trabalho seja rotulado como arte contemporânea, o que ocorre com outros participantes da mostra, como os ativistas do coletivo de cineastas sírios Abounaddara. Quem poderia fazer parte desse grupo é Britta Marakatt-Labba, do Sami Artist Group, com seus impressionantes bordados épicos, que narram histórias dos países nórdicos e transita entre arte e artesanato.
Imigrantes
Na entrevista coletiva que abriu a seção alemã da documenta, que durou quase três horas e onde todos os curadores responsáveis falaram, Szymczyk sugeriu que o primeiro local de visita na cidade deveria ser a região norte, onde vive a maior parte dos imigrantes da cidade, como turcos, etíopes e búlgaros. Lá, em vitrines de uma antiga rua comercial em decadência e abandonadas, artistas como Angelo Plessas e Vivian Suter realizaram obras que podem ser vistas pelos passantes, dando acesso de parte da mostra aos imigrantes que diariamente passam por ali, uma transformação delicada de seu cotidiano.
A questão da imigração ganha amplitude na mostra na Neue Neue Galerie, um novo espaço expositivo da cidade, antiga sede dos correios e espaço com imenso pé direito, o que deu a ela o apelido de Turbine Hall de Kassel, certamente um exagero. Lá estão obras que abordam o assassinato de Halit Yozgat (1985 – 2006), filho de imigrantes turcos, que nasceu e morreu em Kassel, vítima de um grupo terrorista neonazista. Ocorrido há dez anos e até hoje sem julgamento, o crime em um internet café é remontado seguindo técnicas de polícia científica por um grupo denominado The Society of Friends of Halit (Sociedade dos amigos de Halit).
Nessa seção da mostra, muitas obras fazem referência a questão da imigração em Kassel, como a série de fotografias da palestina Ahlam Shibli, que produziu imagens da integração de estrangeiros na cidade, como o time de futebol, FC Bosporus, com maioria de jogadores turcos, mas incluindo também líbios, croatas e até alemães, e participa da 5a. divisão.
Traumas da sociedade contemporânea são abordadas lá pelo artista espanhol Daniel García Andújar, que refaz a série de Goya Os desastres da Guerra, a partir de cenas reais de conflitos atuais, e ainda criou um “antimonumento” sobre uma efeméride nazista de Kassel, que seria queimado em junho.
Os traumas do nazismo, contudo, ganham de fato contundência na Neue Galerie, um museu local, que pela primeira vez é inteiramente tomado pela documenta e cria relações densas sobre a história alemã. Entre as tramas criadas nesse espaço, vem à tona um dos desejos da curadoria, que era expor toda a coleção de Cornelius Gurlitt, com 1.285 obras confiscadas pela justiça alemã, em 2012, por terem origem em obras confiscadas pelos nazistas, incluindo muitos mestres modernistas como Monet, Matisse, Renoir e Chagall.
Sem condições de trazer a coleção, que foi reunida pelo galerista e historiador de arte Hildebrand Gurllit (1895 – 1956), em um ato polêmico, Szymczyk apresenta desde obras do pintor Louis Gurlitt, o avô de Hildebrand, que deu início à relação de arte da família e pintou vistas da Acropois, uma das marcas do romantismo alemão. Trazer à tona a questão Gurlitt, relacionando arte e nazismo é dos pontos altos da mostra.
Essa rede de conexões entre passado e presente, Kassel e Atenas, ganha contornos militantes quando é vista a obra de Lorenza Böttner (1959 – 1994), que nasceu Ernst Lorenz no Chile de família alemã. Tendo perdido os braços na infância, ela retorna com a mãe à Alemanha, estuda arte em Kassel e aprende a pintar com a boca e os pés, realizando obras impactantes, tendo defendido uma tese contra o conceito de incapacitados.
Gestos radicais são vistos, sem uma carga tão dramática, nas obras das militantes feministas de Annie Sprinkle e Beth Stephens, que desde os anos 1960 produzem trabalhos que abordam questões de gênero.
Em Kassel, a documenta 14 se divide em 33 espaços, alguns com apenas uma obra, outros com cerca de 100 artistas, como a Neue Galerie, onde Gerhard Richter comparece, por exemplo, com apenas um pequeno retrato de Arnold Bode (1900 – 1977), o criador da documenta, que também é tematizada no espaço.
Juntando Atenas e Kassel, são mais de 250 artistas, sendo 149 vivos, 106 mortos, uma quantidade impressionante, uma mostra grandiosa e complexa, como pouco se tem visto, por tecer tantas relações, tratar tantos assuntos, ser generosa em tantas linguagens, estar presente em tantos espaços. É praticamente impossível dar conta de tudo, mesmo quem esteve com tempo em ambos os lugares, mas o sentimento final é que essa documenta fica marcada como uma exposição que se constitui em redes, valorizando espaços públicos, trocas, questões prementes, ou seja, tudo que a onda neoliberal não gosta. Novamente, Kassel, e agora junto com Atenas, faz história.
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