León Ferrari, o transgressor

Patrícia Rousseaux Capa: O gesto permanece, 07/2013. Detalhe de duas obras inacabadas de León Ferrari, fotografadas no momento em que ele era velado na sua casa em Buenos Aires, Argentina.

Em 2011, passei toda uma tarde no ateliê de León Ferrari, em Buenos Aires, local onde ele trabalhava diariamente até o mês de julho passado, quando morreu aos 92 anos. Com humor sarcástico e fino, próprio das pessoas inteligentes, meu amigo de décadas passou a limpo, comigo, o cenário internacional de arte, a situação política e a igreja e suas mazelas. Minha visita não era de jornalista, mas de uma amiga de muitos anos.

Conheci León logo que chegou a São Paulo, “fugindo” da ditadura militar argentina. Logo na primeira entrevista, entre as inúmeras que fiz com ele, descobrimos que tínhamos muito em comum. Fomos plantados em solo fertilizado pela sede de justiça social, pela indignação contra as atitudes arbitrárias da Igreja e contra as ditaduras militares. Foi com ele que maquinei uma entrevista com o pai de Che Guevara, que morava em Havana. Eu trabalhava no jornal O Estado de S. Paulo e o Brasil não tinha relações diplomáticas com Cuba. Transgredir regras também fazia parte do ideário leonino. Assim, embarquei para Cuba sem visto e demorei 30 horas para chegar à Ilha, porque os voos da cidade do México para Havana, pela Aeroflot (companhia soviética, na época), estavam cancelados. Como já imaginava, fiquei detida por muitas horas na Polícia Federal do aeroporto de Havana. Afinal, eu era uma jornalista de um jornal de centro direita, sem visto e sem amigos pessoais cubanos. Depois de algumas entrevistas, resolvi apelar dizendo que era amiga de León Ferrari, que eles poderiam ligar para ele e que ainda tinha uma lista de nomes de cubanos amigos dele. Com isso, as horas a mais que eu deveria ficar nas mãos de alguns burocratas foi encurtada e assim pude não só entrevistar Ernesto Guevara Lynch, como também fazer uma série com três reportagens sobre vários aspectos sociais e culturais cubanos.

Quando León fixou residência no Brasil, a arte contemporânea brasileira teve a oportunidade de receber um de seus agentes mais ousados, criativos e inovadores. O deslocamento reconstrói nosso lugar no mundo e, muitas vezes, nos faz crescer e melhorar a sociedade que nos acolheu. Assim a arte brasileira ganhou, e muito, com a presença de León Ferrari, artista multimídia e poeta e militante político.

O golpe militar de 24 de março de 1976, aplicado pela Junta das Forças Armadas Argentinas, deu lugar a uma das piores experiências já vividas pela democracia daquele país. Para deixar claro que a situação era endurecer, um dos primeiros atos do general Ibérico Saint-Jean, governador de Buenos Aires, foi anunciar: “Primeiro mataremos todos os subversivos, logo mataremos os seus colaboradores, depois os seus simpatizantes, em seguida os que permanecem indiferentes e, finalmente, os tímidos”. Depois de alguns anos do fim da ditadura, o famigerado general foi processado por crimes de lesa-humanidade.

Sobrevivendo em situação de risco, León Ferrari e sua mulher Alicia e dois de seus filhos decidiram vir para o Brasil. Ariel Ferrari seu filho caçula e sua namorada morreram nas mãos dos militares mas seus corpos nunca foram encontrados.

A vida pessoal de León se refletia nas obras carregadas de indagações e ele se sentia livre para errar, com algumas verdades provisórias e muitas certezas definitivas. Ferrari tinha uma filosofia de vida que emergia em seu trabalho como um ponto de inflexão da insistência sobre a vida terrestre e a divina, recheado de posições heréticas e agnósticas. Na Argentina, alguns quiseram silenciar sua arte, mas ela, forte e universal, transcendeu fronteiras e foi reconhecida mundialmente. Não foi por acaso que a Bienal de Veneza, em 2007, concedeu o Leão de Ouro a León Ferrari, pelo conjunto da obra.

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A história mostra como alguns países foram enriquecidos culturalmente com a imigração de intelectuais e artistas perseguidos politicamente em sua terra natal. Parafraseando Hannah Arendt, o que salva os dons realmente grandes é que os que arcam com esse ônus permanecem superiores ao que fizeram, pelo menos enquanto estiver viva a fonte de criatividade. Ferrari não se deixou abater profissionalmente e trabalhava vertiginosamente em seu ateliê no bairro paulistano de Vila Madalena, alternando viagens a Buenos Aires à procura do filho e nora.

Sua produção, diferenciada e provocante, denunciava um criador vivo que naturalmente se incorporou à produção de arte brasileira, sendo convidado para várias exposições de arte contemporânea. Na Argentina, ele fazia política e, mais do que isso, arte política. No Brasil, sua obra cresceu ainda mais e sem concessões. Em 1985, em uma exposição do MAM paulista, cristalizou em obra uma crítica sobre uma das passagens da Bíblia. A instalação criou polêmica entre cristãos e hereges. Era composta por pombas presas em uma gaiola e que formavam uma cruz de excrementos sobre uma reprodução da obra Juízo Final, de Michelangelo, resultado da reflexão de León sobre o que ele definia como chantagem do inferno. “O castigo ao diferente motivou, através dos séculos, vários extermínios contra os hereges, os índios, os judeus, as bruxas, os vietnamitas…”

Em São Paulo, onde morou de 1976 a 1991, ele tinha mais liberdade e espaço para trabalhar, embora a Operação Condor estivesse muito ativa capturando militantes de esquerda por toda a América Latina. Ao longo dos anos, expôs em museus, galerias e foi convidado da Bienal Internacional de São Paulo.

Retomou as esculturas de aço abstratas do início dos anos 1960 e com elas criou composições sonoras e performances antológicas como a que tirou som das grossas hastes de ferro que compunham sua escultura de mais de 2 m de altura. Espírito inquieto, tentou outras poéticas em suportes nunca antes experimentados, como xérox, videotexto, arte postal, microfichas, heliografia, uso da letraset e tantas outras.

Durante toda a sua trajetória, León Ferrari sempre colocou em xeque o papel do Estado e da Igreja. Quando o papa Francisco ainda era o cardeal Jorge Mario Bergoglio, chamou Ferrari de “blasfemo”, pelos trabalhos apresentados na retrospectiva que fez no Centro Cultural Recoleta, em 2004, em Buenos Aires. A mostra foi invadida e algumas obras foram destruídas por radicais católicos.

Já antes tinha executado colagens trazendo a tona artistas como Dante, Pisano e Bosch, responsáveis pelo imaginário sobre o inferno e seu personagem central, o diabo. Estas foram publicadas em 1995/96 pelo jornal argentino Pagina/12, acompanhadas de listas com desaparecidos políticos. As obras mesclam a ditadura, o nazismo e a Igreja.

Em uma entrevista, em 2006, ao jornal portenho Clarín, León que encarou o campo artístico como laboratório experimental para a criação e aprimoramento de novos códigos e linguagem, potencializando sua contemporaneidade, desabafou: O único que peço à arte é que me ajude a dizer o que penso com a maior clareza possível, que me ajude a inventar signos plásticos e críticos que me permitam condenar a barbárie de Ocidente. É possível que alguém me demonstre que isto não é arte, mas não tem nenhum problema, eu não mudaria de caminho, me limitaria a trocar o nome. Apagaria a palavra “arte” e a chamaria de “política” ou de qualquer coisa”.

Depoimento de colegas e amigos 

No Brasil, depois de conhecer Regina Silveira
e Júlio Plaza, León Ferrari procurou novos caminhos
de linguagem. Trabalhou com barras metálicas, espécies
de “hachuras no espaço” e, também, com arte postal, vídeo. E desenvolveu intensa obra gráfica. Em 1978, Aracy Amaral, diretora da Pinacoteca, realizou uma grande individual no museu e chamou atenção para a poética tridimensional de Ferrari.
Foi nessa época que nos conhecemos, pouco depois sucedi Aracy na Pinacoteca e iniciamos um intenso trabalho de xerografia, do qual León era assíduo. Pouco depois, assumi a Secretaria Municipal da Cultura e, em 1983, convidei-o para realizar uma escultura em homenagem a Alceu Amoroso Lima que foi colocada na marginal do rio Pinheiros.
León fez ‘uma catedral para
o vento dos direitos humanos’” 

Fábio Magalhães, curador

Estávamos juntos e estávamos sozinhos. León fumava
seu cigarro, sentado em uma cadeira, de forma lenta
e parcimoniosa, as espirais de fumaça enredando ainda mais o novelo de fios metálicos que as suas mãos, grossas e repletas de veias como as de um camponês imemorial, trabalhavam com sigilosa atenção ao detalhe, aos mil
nós de toda a forma impecável. Eu perambulava pela
parte de cima, no alto daquele ateliê saturado de obras,
e sentia chegar o cheiro daquela fumaça como se trouxesse a exata textura da terra. León tinha me recebido, alguns anos atrás, com uma generosidade surpreendente, mas também com sábia desconfiança: afinal, eu trabalhava no Museu de Arte Moderna de Nova York, criado graças aos esforços de alguns dos inimigos mais sonoros de Ferrari, os senhores Rockefeller. O mais pungente crítico da teologia católica nas artes do continente americano aceitou que um curador católico – vá lá, muito heterodoxo – organizasse a mais importante exposição de sua obra nos Estados Unidos, pelo menos até agora.”

Luis Pérez – Oramas, filósofo, historiador e curador

Mantivemos extremo contato pela admiração e empatia entre nossos trabalhos. León com suas pinturas gráficas
em giz de cera, outras gráficas esculturas com arames
e as maiores com barras e canos de diversos tipos de ferro e aço, suas grafias com símbolos e “bonecos”, utilizados na linguagem de arquitetura e suas colagens “eroticoblasfemas”. Também nos incluímos no enorme círculo da arte postal e por ter me envolvido e mergulhado na descoberta da xerofrafia, a ponto de, a convite de Fabio Magalhães, então diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, criar workshops com técnica. Então, León, movido pela sua eterna curiosidade e jovialidade quis ser meu “aluno” xerográfico, estreitando cada vez mais essa nossa amizade e cumplicidade, que durou até seu final de “exílio”, brasileiro e sua volta à terra natal.”

Hudinilson Jr., artista

León Ferrari é muito lembrado por suas especulações bíblicas e sátiras agudas à Igreja, ao clericalismo
e às injustiças cometidas pela ditadura argentina. Mas sua obra vai muito além dessas instalações, livros e discursos. Claro que o seu grande tento, o premiado bombardeiro
com o Cristo Crucificado, em pleno período da guerra do Vietnã, marcou sua trajetória e o projetou além fronteiras. Além de sua participação em Malvenido Rockefeller e Tucuman Arde, de fins dos anos 1960, eventos destacados na arte participante argentina contra a exploração, o imperialismo e os regimes militares. Mas até seu silêncio por um período, depois que saiu da Argentina,
foi eloquente. Quando me recordo
dele dizendo que redescobriu aos poucos
a vontade por desenhar, aqui em
São Paulo. Após um tempo de reclusão, suas caligrafias se multiplicaram como discursos poéticos de grande beleza para todos os olhares, em desenhos e gravuras.” 

 
Aracy Amaral, crítica e curadora de arte

Conheci o León Ferrari em São Paulo na década de 1970, no atelier de Vila Mariana do Romildo Paiva, quando nós dois estávamos ali fazendo gravura em metal. Imediatamente entramos em sintonia fina por nossa ideologia antimilitar e também por nossos pensamentos paralelos como artistas que têm um papel político dentro de uma sociedade. A amizade foi forte e duradoura durante todas essas décadas, tanto em São Paulo nas inúmeras casas em que ele morou durante o exílio, quanto em vários lugares do mundo onde nos encontramos, tendo ele e sua esposa Alicia me visitado em Nova York quando eu era bolsista da Fulbright (ficaram hospedados em meu apartamento), e eu os visitei em Buenos Aires inúmeras vezes após o seu retorno.”


Alex Flemming, artista

Exposição

No final do mês de setembro, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade São Paulo inaugurou a mostra León Ferrari – Lembranças de Meu Pai. Entre desenhos, esculturas e pinturas, são 57 obras do argentino produzidas na época em que ele viveu em São Paulo. Ao escolher a obra de Ferrari no processo de implantação de sua nova sede, o diretor do museu Tadeu Chiarelli explica que a intenção era “transformar tal reconhecimento em homenagem a esse artista que nunca se deixou submeter por nada ou ninguém que se opusesse ao inconformismo que sempre caracterizou sua obra”. 

Serviço
 
León Ferrari: Lembranças de Meu Pai

MAC USP – Av. Pedro Álvares Cabral, 1301 – São Paulo-SP
Até 24 de março de 2014
Terça das 10 às 21; Quarta a domingo, 10 às 18 horas
Entrada Gratuita 


Comentários

3 respostas para “León Ferrari, o transgressor”

  1. com estas ideias nao posuem teologia, se como cultura argentina

  2. A art argentina e muito emteresante, na mia opniao as vezes assisto na tv camara umas emtrevistas com artiscas argentinos

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