Os mais jovens precisam conhecer Leonilson, a poesia delicada – mas visceral – de sua obra plástica. Muitos o desconhecem. O artista faleceu precocemente, em 1993, aos 36 anos, em plena ascensão criativa. Logo depois, familiares e amigos criaram o Projeto Leonilson, que desde então tem pesquisado, organizado, catalogado, exposto e divulgado o trabalho desse cearense radicado em São Paulo, de alma cosmopolita, cidadão do mundo. O objetivo é publicar o Catálogo Geral do Artista, que já catalogou cerca de três mil obras. Neste segundo semestre, o Projeto Leonilson se associou à Pinacoteca do Estado de São Paulo para expor a importância e singularidade do artista.
A exposição Leonilson: Truth, Fiction, que vai até 9 de novembro, na Estação Pinacoteca, em São Paulo, é fruto dessa colaboração e tem a grandiosidade que ele merece. Ocupa todo o 4o andar do belo edifício do Largo General Osório, que já foi escritório de uma linha ferroviária e sede da polícia política. O espaço de amplo pé direito foi dividido em seis módulos, considerando aspectos formais, temáticos, técnicos ou temporais. São eles Mapas, Diário, Matemática e Geometria, Brancos, Os 1991 e Ilustrações (para o jornal Folha de S.Paulo. Entre 1991 e 1993, ele ilustrou a coluna de Barbara Gancia, intitulada Talk of the Town).
Há ainda uma sala com a instalação Capela do Morumbi, projetada por Leonilson para uma igreja e montada pela primeira vez logo após seu desaparecimento. São cinco elementos de pano de coloração clara (dois vestindo o espaldar de cadeiras, um no assento de uma cadeira e dois feito aventais, pendurados em cabides). Em cada um está bordado um nome: Da falsa moral, Do bom coração, Los delícias, Lázaro e Sem título. À meia-luz, esses trabalhos parecem um sacrifício propiciatório, oferecido no altar da eternidade. São personagens de uma cena religiosa de vida, paixão e morte. Por fim, em outra divisória, é projetado ininterruptamente o vídeo Leonilson e um Oceano Inteiro para Nadar, de Karen Harley. Vale a pena sentar para assistir, pois, para além da sua obra, a imagem de Leonilson, sua simpatia, o ar ingênuo e a sinceridade são cativantes.
José Leonilson Bezerra Dias despontou na chamada Geração 80, grupo de artistas que amoleceu e humanizou os rígidos padrões estéticos e conceituais das décadas anteriores. Nos anos 1950, 1960 e 70, ainda sob a égide modernista, os artistas queriam mudar o mundo e salvar o futuro. A arte era comprometida com o social, engajada. Com o desgaste e frustração do projeto revolucionário do século XX, e a consequente melancolia e mal-estar civilizatório, os artistas voltaram para si mesmos. Só restava a eles o presente. Foi o caso de Leonilson. E de muitos outros que brotaram, principalmente, dos cursos de arte da Fundação Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo, e da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Alex Vallauri, Beatriz Milhazes, Daniel Senise, Leda Catunda, Luiz Zerbini, Mônica Nador e Sergio Romagnolo, entre outros, costumam ser colocados nesse time.
Mas nenhum deles deu um mergulho tão profundo em sua própria alma como Leonilson. Em seus últimos anos, ele converteu sua vida em obra de arte, ao tecer uma espécie de diário em trabalhos delicados, confeccionados, muitos deles, sobre tecido. Técnicas tradicionais, como a pintura sobre pano sem o chassi, o desenho e a escrita em bordado, a costura, a tecelagem, suavizaram um pensamento estético formalista, que bebeu da fonte de seus professores na FAAP, como Julio Plaza, Regina Silveira e Nelson Leirner. Segundo o curador Adriano Pedrosa, “a abstração geométrica é tão radicalmente transformada por Leonilson, contaminada por contundentes personagens e narrativas, que não deixa pedra sobre pedra na tradição construtiva ortodoxa”.
Fica claro que não podemos nos deixar enganar. Leonilson se dedicou meticulosamente à recuperação da ideia de artesanato, mas nem por isso era um artista simplório ou sem reflexão. O título da exposição demonstra isso. Leonilson: Truth, Fiction vem de escritos presentes em um desenho de 1990 do autor, intitulado Favorite Game. O jogo favorito do artista era mesmo embaralhar referências do real com fabulações, conteúdos biográficos e ficcionais, notícias misturadas a episódios da sua vida privada. Isso de maneira minimalista, valorizando o branco, o vazio e o nada, ou grandes áreas de cores singulares.
Em Leonilson: Truth, Fiction, o curador Adriano Pedrosa privilegiou trabalhos dos últimos anos de vida do artista. São mais de 150 obras, a maioria objetos de panos costurados, com palavras bordadas sobre a frágil condição humana, a solidão, a finitude, a doença, a incomunicabilidade. São temas românticos por excelência, que o artista moderno não quer mais enfrentar. Mas não Leonilson. Consciente da brevidade da vida, ele fez da obra um testemunho de sua trajetória artística e pessoal. E, ao fazer isso, deixou um testemunho estético pungente sobre o tempo que lhe coube viver.
Estação Pinacoteca
Até 9 de novembro
Largo General Osório, 66 – São Paulo – SP
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