Local, suburbano e global

Adriana Varejão, “Panorama da Guanabara”, 2012,óleo sobre tela e resina, 120 cm x 550 cm. A obra integra a exposição “Guignard e o Oriente, Entre o Rio e Minas” - Foto: Eduardo Ortega
Adriana Varejão, “Panorama da Guanabara”, 2012,óleo sobre tela e resina, 120 cm x 550 cm. A obra integra a exposição “Guignard e o Oriente, Entre o Rio e Minas” – Foto: Eduardo Ortega


Augurado há dois anos, em 1
o de março de 2013, o Museu de Arte do Rio–MAR é o espaço público mais significativo na nova geografia das artes visuais da capital fluminense. Vinculado à esfera municipal, gerido por meio do Instituto Odeon, organização social parceira da prefeitura carioca desde 2012, o museu é dirigido pelo cura- dor e crítico Paulo Herkenhoff. Instalado na Praça Mauá, uma das áreas da região central que serão revitalizadas com o projeto Porto Maravilha, o MAR é para todos, mas tem como prioridade promover às crianças e aos adolescentes da rede pública de Ensino Fundamental do Rio de Janeiro o acesso às artes visuais, como explicou Herkenhoff, na sede do museu, em entrevista à ARTE!Brasileiros: “O MAR custa R$ 3 milhões ao ano. O retorno social desse valor tem de ser o foco na educação”.

A responsabilidade de atender a enorme população à margem da região central, e dos aparelhos culturais da cidade, fez com que o diretor do MAR adotasse a estratégia de extrapolar os limites arquitetônicos da instituição para ramificar ações em comunidades como Borel, Santa Cruz e o Complexo do Alemão. Desafio que aproximou a equipe do museu da realidade dos subúrbios e das favelas cariocas, e que resultou em situações limite, como a enfrentada por uma curadora que, por duas horas, ficou encurralada em um beco, refém de traficantes armados.

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“Em 2014, diretores das escolas com pior desenvolvimento na cidade vieram nos pedir ajuda. Algumas turmas que aqui estiveram voltaram com outras perspectivas de aprendizado e ficou claro que era preciso ampliar nossas ações. Foi então que descobrimos que não adiantava chegar sozinho nessas comunidades e decidimos participar dos diálogos já estabelecidos. Passamos a atuar, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz, no Borel e na região de Santa Cruz, um dos bairros mais pobres da cidade, com os mais baixos índices de desenvolvimento humano e, curiosamente, um dos que mais trazem crianças ao MAR. Levar nossas experiências educacionais para fora do museu e atingir grupos maiores passou a ser tão importante quanto promover visitas à nossa sede. Dentro de sua vontade internacionalista e globalizante, o MAR quer ser um museu local e suburbano”, diz Herkenhoff.

Nos dois primeiros anos de atividade, lidar com as disparidades sociais do Rio não foi o único desafio enfrentado pela equipe do MAR. Outras consequências das transformações em curso na cidade bateram à porta da instituição, como o convívio diário com o caos decorrente da demolição do elevado Perimetral e a construção de outro vizinho, o Museu do Amanhã (dedicado à ciência e à tecnologia, o espaço público tem inauguração prevista para o segundo semestre de 2015). Some-se ao turbilhão de reformas estruturais da Cidade Maravilhosa o fato de o MAR estar localizado em um ponto estratégico para milhares de manifestantes que, desde junho de 2013, têm ido às ruas do Rio para expressar toda sorte de insatisfações.

Em um desses episódios, em 15 de agosto de 2013, Herkenhoff protagonizou uma história inusitada. Naquela noite, o MAR sediou a Conferência Geral do Conselho Internacional de Museus, que reuniu cerca de 250 diretores de instituições mundiais. As formalidades da cerimônia de abertura do evento, claro, exigiram a presença do prefeito Eduardo Paes e do ex-governador Sérgio Cabral, alvo preferencial dos manifestantes, que foram às centenas até à porta do MAR exigir um diálogo com ele. Temendo conflitos violentos e a invasão do museu, com o risco de violações de obras do acervo e pertencentes a colecionadores, Herkenhoff abandonou o coquetel, desceu ao térreo e assumiu o papel de mediador.

“A tensão estava aumentando e a polícia começou a jogar bombas de gás e spray de pimenta nas pessoas. Pouco depois, vi um índio sendo algemado. Fui até o policial e tentei dialogar, mas ele não deu a mínima. Decidi ficar agarrado ao índio e ele falou que ia me dar voz de prisão. ‘Pode dar! Em 30 segundos estarei solto’, disse a ele. Claro, levei um safanão e meus óculos caíram. Tive catarata e, sem óculos, quando enfrento a luz diretamente, parece que estou bêbado. Quando levantei, vi o índio livre e a polícia vindo prendê-lo, novamente. Voltei a agarrar o rapaz e só então percebi que era um segundo índio! Um militar veio dizer: ‘Vocês, diretores de museu, só pensam em coisas materiais!’. Respondi: ‘Claro, eu estava agarrado ao índio, levando porrada, por causa do colar de pena de urubu dele’.” Narrado assim, o episódio parece divertido, mas custou a Herkenhoff mais de duas horas de tensão e sua ausência entre os convidados da conferência.

Curadoria, colecionismo e batalhas de hip-hop

Os policiais incumbidos de conter o protesto sequer deviam desconfiar, mas a reposta irônica do diretor do MAR veio de alguém com profundo interesse histórico pela cultura indígena, e que há 30 anos faz duas viagens anuais à Amazônia. Não por acaso, entre as mostras realizadas no museu que tiveram curadoria de Herkenhoff, Pororoca – A Amazônia no MAR tratou de questões estéticas da região, mas teve também o viés antropológico. Realizada entre setembro e novembro de 2014, a exposição reuniu parte expressiva do rico acervo de arte amazônica do museu, composto por mais de 500 obras de arte e objetos, alguns deles doados por colecionadores, como explicou Herkenhoff, ao falar dos meios de colecionismo praticados pela instituição. “Um doador tinha três cestas indígenas e perguntou se a gente as queria. Na mesma semana, uma pessoa nos procurou para oferecer um cocar do Kuarup”, conta.

Doações dessa natureza são chamadas pela equipe do MAR de “Núcleo Significativo” – quando peças aparentemente aleatórias podem ser integradas para formar uma narrativa, como no exemplo acima. Além delas, há outras duas modalidades, que movimentam um número maior de obras, apesar de alguns percalços. “As grandes coleções privadas do Rio não estão doadas e nem prometidas aos museus que a cidade abriga. Temos ainda de pensar na hipótese de que muitas das obras prometidas podem ser retiradas pelos herdeiros. Com isso, a cidade perderá algumas décadas de colecionismo. Uma perspectiva muito grave. A formação do nosso acervo também se dá de duas formas: colecionadores que doam duas ou três obras, e aqueles que chamamos de ‘fundos’, que são doações – ou a manifestação da vontade de ceder em prazo indeterminado – de 20 ou mais obras.”

Essa aproximação da sociedade e de instituições parceiras tem sido fundamental para o desenvolvimento da coleção do museu, que já conta com mais de 4.700 itens. Mesmo com poucos recursos, por esses meios, nas feiras SP-Arte e ArtRio de 2014, cerca de 90 obras entraram para o acervo. A propósito dos 450 anos do Rio de Janeiro, que aniversaria junto com o MAR, o museu tem um espaço fixo dedicado à história da cidade, ocupado até 11 de maio pela mostra Do Valongo à Favela: Imaginário e Periferia. Com curadoria de Rafael Cardoso e Clarissa Diniz, a exposição dá continuidade a uma pesquisa histórica cronológica, como esclarece Herkenhoff: “Primeiro falamos sobre a construção da paisagem da cidade com a mostra imagináRio. Agora, chegamos ao período setecentista quando o Rio se tornou capital do Vice-Reino. Com um viés crítico, Do Valongo à Favela trata de questões como urbanismo, escravidão, vida social, ciência, o papel das normas religiosas e a vida cotidiana”. Em cartaz até 26 de abril, outra mostra que leva a assinatura de Herkenhoff – porém, a seis mãos, com os curadores Priscila Freire e Marcelo Campos – é Guignard e Oriente, entre Rio e Minas, que data da influência oriental na obra do pintor carioca.

Além dessas exposições regulares, entre seminários, cursos, oficinas, apoio educativo a professores do Ensino Fundamental e parcerias com instituições, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade de São Paulo (USP), o MAR realiza a cada ano cerca de 400 atividades. Em 2015, o museu começou a ampliar sua biblioteca – que já dispõe do maior acervo de livros de artista do País – e também há planos de formação de um núcleo de estudos sobre a obra do filósofo Walter Benjamin. Algumas ações do MAR aproximam o público mais distante com propostas de apelo popular, como a Batalha do Conhecimento, uma rinha de MCs feita imediata- mente após a visitação às exposições. O confronto saudável, mediado por rimas ágeis, acontece uma vez por mês e reúne cerca de 1.500 adolescentes e jovens de diversas comunidades na sede do MAR.

Saídas como essa, defende Herkenhoff, são pontuais para atingir aspirações do museu que extrapolam o universo formal das artes visuais com o intuito de provocar reflexões sobre a contemporaneidade da sociedade brasileira: “Como instituição pública, o MAR deve ser constituído por meio de um diálogo com a sociedade. Somos um museu de cultura visual e temos aqui, por exemplo, seis bonecos vestidos para ir à praia em Ipanema: uma Barbie, seu namorado, Ken, um casal de afro-americanos, uma hispânica e um asiático. São formas de representação do Rio e de como o mundo vê a cidade. Algo que também faz parte de nosso universo visual. O mesmo acontece com a cultura dos videogames. Não queremos saber se ela é arte, ou não. Fato é que, neste momento, como aponta uma tese da pesquisadora Paula Sibili, da Universidade Federal Fluminense (UFF), muitas crianças estão na escola, entre quatro paredes, e a cabeça delas está na rede ou no videogame. Em breve vamos discutir com a Paula como a tecnologia pode ajudar a escola e o museu a ficarem mais próximos desse universo em rede, pois é um grande desafio pensar que as escolas estão entre quatro paredes e a cabeça das crianças está fora delas. Saber como é que a gente vai sair dessa também é uma questão importante para o museu”.


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