Marta Minujín tem um projeto antigo para o Rio de Janeiro: construir uma réplica do Cristo Redentor coberta por feijão. A ideia é erguer uma estrutura de ferro, no formato e no tamanho do original, e revesti-la com sacos de feijão. A obra ficaria exposta por algum tempo e no final cada visitante poderia levar para casa uma porção dessa semente, que o brasileiro adora comer com arroz, até consumir todo o Cristo. Surpresa, estranhamento, ironia, provocação, humor, ousadia, reflexão, simplicidade. Marta Minujín é assim. Resta saber se alguma autoridade ou mecenas carioca vai se animar a dar carta branca a essa que é a mais conhecida artista plástica argentina viva.
Marta Minujín inaugura uma exposição individual em São Paulo pela primeira vez, em 10 de setembro, na Galeria Pilar, sob a curadoria do também argentino Rodrigo Alonso. Os trabalhos reunidos resumem a carreira de Minujín, que começou nos anos 1960 com obras efêmeras, passou por instalações de ambiente psicodélicas, “ações” e “arte massiva”’. Obviamente, vários trabalhos de Minujín não existem mais. O que temos é a documentação da obra: projetos, desenhos, croquis de instalações, de performances, de happenings, fotos, filmagens, textos, críticas, matérias de jornais, etc.
“É arte efêmera porque a última etapa do trabalho é das pessoas, sem público que a desarme seria redundante, impossível. A obra tem de ser efêmera, mas que perdure na mente das pessoas e também na internet, que é a memória coletiva”, explica Minujín sobre o fato de a maioria de seus trabalhos serem consumidos de alguma forma. Em 1963, por exemplo, quando morava em Paris, chamou a atenção com La Destrucción, obra autodenominada happening, em que convocava outros artistas, como Alejandro Otero, Carlos Cruz-Diez e Christo, a queimar sua “escultura habitável”, construída com colchões resgatados de hospitais, em uma via de Montparnesse, na capital francesa. O evento era a obra de arte em si, o que se tornou constante na carreira de Marta Minujín.
Montar uma exposição retrospectiva de uma artista assim é um desafio, pois suas obras ou são performances ou são consumidas imediatamente. Um bom exemplo é a exposição que o MoMA organizou, em 2010, para a artista sérvia Marina Abramovic, que gerou o belo documentário Marina Abramovic – Artista Presente, de Matthew Akers e Jeff Dupre. No final desse mesmo ano, Marta Minujín também recebeu a maior homenagem que um artista argentino podia receber: o Malba – Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires fez uma grande retrospectiva da sua obra, reproduzindo instalações, como a Escultura Habitável de colchões, e exibindo quase toda a documentação de uma trajetória inquieta e instigante.
Marta Minujín começou a produzir arte em 1959. A partir daí, morando em Buenos Aires, Paris e Nova York, viu o nascimento e o desenvolvimento do hiperrealismo, do pop, da arte conceitual, da performance, do happening, da arte psicodélica, da videoarte, da arte envolvendo os meios de comunicação, da arte da ação. Enquanto isso, o mundo sangrava na Guerra do Vietnã e o homem ia à Lua. Na América Latina, violência e ditaduras. Esse trabalho foi uma resposta provocativa e irreverente a tudo isso.
Em 1978, a Argentina se encontrava sob ditadura militar. Minujín planejou uma escultura simples, mas ousada, que não tinha certeza de que iria passar pela censura: o Obelisco Acostado. Em praça pública, ela construiu uma réplica do famoso Obelisco da Avenida 9 de Julio – marca de Buenos Aires, e símbolo fálico plantado no coração político do país –, revestida de pão doce. Só que o Obelisco estava deitado, como que caído, e o povo foi convidado a devorá-lo bocado por bocado. O poder sendo devorado pelo povo? Essa obra foi reproduzida na Bienal Internacional de São Paulo daquele ano. “Quando pego o Obelisco e o coloco deitado, provoco um choque. Com o choque, as pessoas se movem, têm de crescer. Provoco um desconforto que faz crescer”, diz Minujín. Ela também participou da Bienal de 1983, integrando o grupo Fluxus, que povoou de happenings o pavilhão do Ibirapuera.
Outra obra gigantesca e de perfil político cuja documentação vem para a Galeria Pilar é Parthenon de Livros, um monumento à liberdade de expressão. Em 1983, a Argentina voltava à democracia e Minujín construiu uma réplica do templo grego com 30 mil livros proibidos pela ditadura, incluindo obras de Marx, Freud, Sartre, Gramsci, Foucault e Darcy Ribeiro, entre outros autores. A escultura foi inaugurada pelo recém-eleito presidente Raúl Alfonsín. Depois de três semanas, os tomos foram distribuídos ao povo. “Escolhi livros porque eles são os veículos da inteligência”, diz Minujín. “Estou muito interessada nos gregos antigos porque eles pensavam, estavam interessados no que é a beleza, o que é a inteligência, o que é a imaginação. Ainda usavam o cérebro, o que é raro hoje em dia.” O trabalho com que Minujín se ocupa atualmente também tem a ver com os inventores da Filosofia: “Farei em breve a Ágora da Paz. Será uma instalação com colunas cruzadas, para prosseguir com minha filosofia da diagonalidade, em que tudo muda segundo o ponto de vista com que se pode ver as coisas. O templo estará coberto com frases alusivas à paz, liberdade e amizade e por ali circularão filósofos peripatéticos em diálogo”.
O público paulista poderá ver também a parceria de Minujín com o artista americano Andy Warhol, de 1985. Trata-se de uma série de seis fotografias da ação O Pagamento da Dívida Argentina. A artista simbolicamente saudava a dívida externa de seu país ao entregar ao mestre da pop arte espigas de milho, um dos principais itens de exportação da Argentina. “Tenho um lado pop e um humor metafísico, sou uma artista psicodélica”, conta Minujín. “Pego os símbolos populares e os modifico, tenho compromisso com a diversão. O drama não tem sentido.”
Ao mesmo tempo, a 9a Bienal do Mercosul (de 13 de setembro a 10 de novembro de 2013, em Porto Alegre) convidou a artista para recriar um trabalho pioneiro de 1966 que muito tem a ver com os dias atuais. Trata-se de Simultaneidad en Simultaneidad, projeto internacional denominado Three Countries Happenings, em colaboração com os artistas Allan Kaprow (em Nova York) e Wolf Vostell (em Berlim). Usavam-se os meios de comunicação instantâneos da época – televisão, telex, rádio – para sair do tempo linear e mergulhar na simultaneidade. “Estávamos todos impactados pelas ideias de Marshall McLuhan, a história da aldeia global. Foi premonitório o que fizemos nos anos 1960. Era um happening que acontecia por 24 horas em três continentes simultaneamente! Ora, o que é hoje a internet?”, pergunta a artista que está para a arte argentina assim como o Obelisco está para Buenos Aires.
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