Na exposição Mestres do Renascimento, no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo (CCBB) até 29 de setembro e, em seguida, no CCBB de Brasília, pela primeira vez o público brasileiro pode ter um panorama abrangente da arte dessa época, em um acervo com 57 obras, muitas de autores de primeira linha, procedentes dos principais museus públicos da Itália e de algumas coleções particulares, com subsídios audiovisuais que contribuem para compreender os contextos histórico e artístico.
A curadoria de Cristina Acidini e de Alessandro Del Priori evidencia as relações e as diferenças entre os diversos centros regionais por meio do arranjo espacial da mostra. O percurso se inicia com Florença, berço da arte renascentista pela retomada do naturalismo clássico, a invenção da perspectiva científica por parte de Brunelleschi, sua divulgação nos tratados de Leon Battista Alberti, fruto da revolução figurativa de Masaccio e de Donatello. Na sala, merece destaque a Virgem da Humildade, de Gentile da Fabriano, um dos maiores artistas do gótico tardio. Em contraste com a plasticidade da criança, indício do contato com a arte florentina, a elegância linear da pose da Virgem e a riqueza do fundo folhado a ouro evocam o clima aristocrático das cortes do norte da Europa. Já na segunda metade do século XV, o afresco de Sandro Botticelli figurando Santo Agostinho em seu escritório repleto de instrumentos científicos, atesta a fusão entre o ideal humanista e o religioso. O tondo com a Anunciação do mesmo mestre, por seu despojamento, sinaliza a crise dessa tentativa causada pela pregação de Girolamo Savonarola, que também aparece retratado pelo dominicano Fra Bartolomeo. O pequeno Cristo Abençoando, obra-prima dos anos florentinos de Rafael, evidencia na formação do pintor a herança de Perugino e a fascinação por Leonardo e pela escultura antiga. Na Virgem com o Menino, de Pontormo, infelizmente em estado não perfeito de conservação, percebe-se a constante meditação do pintor sobre Michelangelo na crise final da República, enquanto o gelado Retrato de Dama, de Bronzino, é um exemplo da cultura de corte sob a dinastia dos Médici. Àquela época perturbada, remonta também o desenho de fortificação de Michelangelo em que sua abordagem à arquitetura aparece radicalmente transformada por considerações funcionais, sugerindo uma instigante comparação com a modernidade.
[nggallery id=16209]
Na sala dedicada a Roma, o visitante se depara com o pequeno tríptico com o Juízo Final, a Ascensão e Pentecoste, obra de Beato Angelico, que a partir das propostas florentinas, conseguiu criar uma pintura religiosa solene e devota, e introduziu na cidade a linguagem renascentista. A presença de Michelangelo e de Rafael introduziu a maneira moderna. Suas interpretações do clássico são representadas pela cópia de um detalhe de uma das últimas obras do Sanzio, A Nossa Senhora, dita A Pérola, e por um estudo do mestre florentino para Porta Pia, em que a arquitetura antiga se encontra radicalmente transfigurada em nova plástica monumental, abrindo caminho para o barroco. O Retrato do Médico Arsilli, um tanto desgastado pelo tempo, obra de Sebastiano Del Piombo, afirma o papel de Roma como lugar de encontro entre as correntes artísticas oriundas dos diversos centros italianos, neste caso Florença, de Michelangelo, e Veneza, de Giorgione e Ticiano.
A produção das cidades da Itália central e setentrional relaciona-se ao surgimento da sociedade de corte. As marchetarias do Palácio Ducal de Urbino, evocando Piero della Francesca, representam cidades ideais, manifestação visível da arte do governo do príncipe, que, como a perspectiva, atribui, conforme a proporção, a medida certa para cada segmento da sociedade. Elisabetta Gonzaga, duquesa de Urbino, foi elogiada por Baldassare Castiglione em Cortesão, como o tipo ideal da mulher renascentista, centro da vida da corte, musa e protetora dos artistas. Sua imagem pintada por Rafael reafirma a importância singular do retrato nesse novo contexto aristocrático, bem como a inserção do pintor na elite social de seu tempo. Dosso Dossi, em Ferrara, tratou com ironia as regras do gênero, figurando o duque Alfonso como exemplar sublime de guerreiro, trajado de ferro, e o sorriso tolo do bufão da corte. Ainda, o lombardo Girolamo Savoldo, precursor do naturalismo de Caravaggio, pintou um jovem flautista a ponto de executar a partitura em um interior carregado de melancolia. Na comparação entre regra e invenção, ideia e habilidade executiva, típica da estética maneirista, se faz presente uma nova figura de artista, o virtuose. Uma obra de Correggio também enriquece a mostra, ao lado de uma cópia de época de Parmigianino, de uma elegância mais cortesã e extravagante, enquanto apenas um reflexo da pintura de Leonardo se vislumbra nas obras modestas de seguidores milaneses, destacando-se o anônimo autor de Leda, da Galleria Borghese.
Já a trajetória da arte renascentista vêneta é representada por muitos dos maiores mestres da laguna e dos centros da região. A alegoria pagã de Alvise Vivarini dialoga com a Sagrada Família, de Andrea Mantegna, na evocação quase arqueológica dos monumentos romanos. A deslumbrante luminosidade que invade a sala marmórea da Anunciação, de Giovanni Bellini percorre o colorismo veneziano do século posterior, identificando espaço e luz. Se as obras de Tintoretto e de Veronese atestam a chegada dos fermentos do maneirismo, ao lado dos modelos de Ticiano, o velho mestre surpreende pela sensualidade de Madalena, da Pinacoteca de Capodimonte, em Nápoles, e pelo intimismo da Nossa Senhora com o Menino, ambas executadas com grande segurança e habilidade de toque, igualada só pelos efeitos dramáticos de luz do São Jerônimo nu, de Jacopo Bassano, absorvido na perplexa contemplação do crucifixo e da vaidade do conhecimento humano perante o inexorável correr do tempo, documento da sombria crise moral que encerra a época na Itália.
Mestres do Renascimento
CCBB São Paulo. Rua Álvares Penteado, 112 – Centro – 11 3113-3651
Até 29 de setembro
CCBB Brasília. Rua SCES, trecho 2, cj. 22 – 61 3108-7600.
De 12 de outubro a 5 de janeiro de 2014
*Doutor em História da Arte pela Universitá degli Studi di Pisa e professor junto à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e professor visitante da Universidade Estadual de Campinas.
Deixe um comentário