Micro-histórias Diárias e a transitoriedade da luz

Detalhes da obra Água Viva, 2012, de  Shirley Paes Leme, exposta em 2012 no Museu Vale (Vitória – ES). Inspirada na obra homônima da escritora Clarice Lispector, a obra é a primeira instalação com grafismos e letras de bronze que derretem na parede, influenciando diretamente as Micro-histórias Diárias
Detalhes da obra Água Viva, 2012, de Shirley Paes Leme, exposta em 2012 no Museu Vale (Vitória – ES). Inspirada na obra homônima da escritora Clarice Lispector, a obra é a primeira instalação com grafismos e letras de bronze que derretem na parede, influenciando diretamente as Micro-histórias Diárias. Foto: Leonardo Finotti

Em sua mostra individual na Galeria Bolsa de Arte, recém-instalada em São Paulo concomitantemente à sua consolidada atuação em Porto Alegre, Shirley Paes Leme apresenta obras inéditas respaldadas em sua ampla pesquisa e desenvoltura artística.

Micro-histórias Diárias apresenta instalação – objetos, vídeo e desenhos recorrentes da poética de Shirley Paes Leme – focada na transitoriedade, no efêmero e singularidades do cotidiano e apoiada em lembranças da infância, que a acompanham em todo seu percurso. A mostra tem início com a instalação Duração dos Dias, enfatizando o tempo a se diluir silenciosamente como em um ritual representado por uma centena de objetos no formato de velas derretidas, todos fundidos em bronze. A luminosidade original do material, aqui empregado pela artista para sintetizar sua ideia, transpõe por si só o brilho e fascínio da luz de uma vela. Sua decomposição é também recorrente à existência e função da vela em si, pois, a emanar luz, ela se destrói. O agrupamento desses objetos na instalação apresentada remete, à primeira vista, a uma paisagem em transformação, como se os elementos e o relevo da natureza estivessem se decompondo. Essa primeira impressão não está necessariamente desconectada com o intuito da artista, que em todo seu percurso faz uso de recursos e elementos naturais para traçar uma consciência mais eloquente do envolvimento e evolução do ser humano em parceria com a natureza. Fogo, água, fumaça, gravetos e terra são protagonistas e simultaneamente testemunhos, tanto no ato de fazer como de concepção da artista.

Foto: Leonardo Finotti
Foto: Leonardo Finotti

A instalação Duração dos Dias vem acompanhada por palavras, compondo frases curtas expostas nas paredes no mesmo local.Os textos reproduzem partes de poemas de Clarice Lispector e Manuel de Barros, remetendo a reflexões sobre o significado e a importância do momento, do instante e da repetição de experiências vividas por cada um de nós.A palavra é escrita em letra corrida, também fundida em bronze, tendo suas formas como a se derreter e escorrer sobre a parede com a mesma maleabilidade das supostas velas derretidas, apresentadas na mesma sala. Ambas obras remetem a ideias semelhantes de fragilidade e efemeridade, assim como do caráter temporal e processual que expressam em si. Dizeres como: “Coisas claras me noturnam”ou “Verbos sumiam ao fogo”,de Manuel de Barros, ou “O instante-já é um pirilampo” e “Tremeluzente como os instantes”, de Lispector, relacionam sentidos com formas e vivências.

A metamorfose de objetos do cotidiano, gastos, revistos e utilizados em um processo de ordem temporal, passa a ser seguida silenciosamente pelo espectador, o qual há de se identificar em cada minúcia das obras concebidas por Shirley Paes Leme. Sua linguagem e mensagem são reais e palpáveis, a exemplo do contexto conceitual e matérico aí exposto.

Em Luz Viva Luz,também apresentada na mostra em uma sala seguinte, o visitante se depara com dois vídeos que se contrapõem e dialogam com demais objetos posicionados nas mesmas paredes. Estes fazem uso de luz, som e dispositivos tecnológicos, todos extraídos do cotidiano, sem notarmos conscientemente sua presença de tanto que estão enraizados em minúcias da vida contemporânea. Segundo Shirley Paes Leme: “Esse universo apossou-se de nossos dias e de nossas horas. Fomos gradativamente levados ao convívio com tais fontes virtuais de informação. Por esses canais passa hoje nossa percepção e interação com o mundo. Nossa percepção da passagem do tempo e da duração dos dias foi profunda e inapelavelmente alterada”.

A instalação Duração dos Dias traz mais de cem objetos fundidos em bronze, produzidos a partir dos resíduos da queima de velas. Os objetos de múltiplos formatos e desenhos trazem em si e ao mesmo tempo a luz que outrora produziram e a que dissipam. Foto: Leonardo Finotti
A instalação Duração dos Dias traz mais de cem objetos fundidos em bronze, produzidos a partir dos resíduos da queima de velas. Os objetos de múltiplos formatos e desenhos trazem em si e ao mesmo tempo a luz que outrora produziram e a que dissipam. Foto: Leonardo Finotti

Para expressar essa agressão visual e vivida de forma involuntária, captada na mídia imediatista, a artista atrai nossa visão para a projeção desses dois vídeos, um deles estabelecendo vínculos e/ou contradições entre as explosões de bombas nas guerras atuais e a natureza essencial, aqui com a forma dos lampejos de vaga-lumes no espaço noturno. Temos de enxergar nesse contexto o conflito entre high e lowtech, e as condições brilhantes da alta tecnologia passam a ser usadas para o mal através de seu emprego em conflitos de guerra, como acontece hoje em tantas regiões, como Israel/Palestina, Síria entre outros. O lowtech contrasta com essa manipulação do mal através da presença, no vídeo, de cenas lúdicas extraídas da memória de infância, no campo povoado de vaga-lumes em suas noites serenas e profundas.

Um segundo vídeo ressalta a alteração dos padrões de iluminação no meio ambiente, devida às fontes de luz criadas pelo homem. Essa poluição luminosa leva a uma perturbação dos padrões naturais de luz e escuridão, interferindo inapelavelmente nos ecossistemas e em nossa percepção do mundo e da realidade. É justamente o mundo em evolução no ritmo de uma progressão constante que nos fascina e inquieta ao mesmo tempo. Ao resgatar e congelar detalhes do cotidiano em um percurso de vida, Shirley Paes Leme tece um histórico pessoal, porém não isolado a ser compartilhado, demarcando a linha do tempo a caminho do século XXII.

 

Galeria Bolsa de Arte
Até 11 de outubro
Rua Mourato Coelho, 790 – Pinheiros – São Paulo – SP
11 3062-2333 – www.bolsadearte.com.br


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