Mostra reúne obras de Bispo do Rosário e de artistas contemporâneos

Em um dia cinzento, o vestido rosa choque de uma mulher se destaca. Ela anda devagar, arrastando uma calda de 12 metros.  Sua roupa chamativa, aliada aos brincos e à maquiagem, contrasta com suas expressões rígidas, tristes. Em determinado momento da caminhada, a mulher para e começa a se cortar com um canivete.  Em seu peito, com seu próprio sangue, escreve: “Por quê?”.  Ela anda mais um pouco e entra em uma passagem subterrânea, onde picha a seguinte frase: “A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. 54% das vítimas são negras”.

Intitulada Por quê?, a performance descrita acima foi realizada pela artista Panmela Castro no dia de abertura da exposição Das Virgens em Cardumes e da Cor das Auras, no Museu Bispo do Rosário. Com curadoria de Daniela Labra, a mostra estabelece um diálogo entre os trabalhos de artistas contemporâneos, como Ricardo Basbaum e Luciana Magno, e a obra do famoso artista Arthur Bispo do Rosário (1911-1989), paciente do antigo manicômio Colônia Juliano Moreira, onde hoje fica o museu.  Serão apresentados 60 trabalhos da coleção da instituição, como, o Manto da Apresentação, que Bispo confeccionou para vestir quando atingisse o paraíso. Nas obras contemporâneas, há duas instalações: Sincretismo Sincronizado, de Siri, e Materializador de Sonhos, de Nadam Guerra. Além disso, uma programação com 10 performances acontecerá a cada último sábado do mês.

A performance é o ponto de conexão entre as obras elegidas pela curadora. “O trabalho que Bispo produziu durante 50 anos foi uma forma de escapar do horror do manicômio. Compreendo a produção dele como uma obra de vida, muito mais do que de arte. É justamente esse limite tênue entre arte e vida que caracteriza a performance”, afirma a curadora. Ela também chama atenção para as ideais místicas do artista e as próprias roupas que ele confeccionava. “Era um existir absolutamente performático”, afirma.

Nascido em Sergipe em 1911, Bispo do Rosário mudou cedo para o Rio de Janeiro, onde trabalhou na Marinha e na companhia de eletricidade Light. Em 1938, foi diagnosticado como esquizofrênico e internado na Colônia Juliano Moreira, hospício onde permaneceu por 50 anos, com algumas interrupções. Dentro de sua cela, criou um universo particular, muito relacionado à religiosidade, no qual produziu bordados, colagens e estandartes a partir dos objetos que tinha à mão, como sucatas, cobertores e até mesmo a linha do seu próprio uniforme. A obra de Bispo foi valorizada tardiamente, quando o crítico de arte Frederico Morais incluiu seu trabalho na exposição À margem da vida no Museu de Arte Moderna do Rio. Depois disso, o reconhecimento de seu trabalho alcançou grandes proporções, sendo exposto na Bienal de Veneza de 1995.

A mostra em cartaz evidencia o processo de clausura que marca a vida do artista.  “As performances que compõem a exposição falam desses corpos totalmente confinados, anulados e maltratados em diversos espaços, como o do manicômio, o da prisão e até mesmo o do lar”, afirma Labra. A intervenção de Panmela Castro aborda justamente essa opressão do corpo feminino.  O vestido rosa utilizado pela artista pesava mais de 10 quilos, tinha uma cauda de 12 metros e uma armação de metal que dificultava muito o caminhar. “A Panmela carregava aquela roupa com muito esforço, parava, olhava para as pessoas, continuava. Esse vestido lindo, rosa e pomposo, representa o fardo da mulher, a pressão que precisamos enfrentar todos os dias, as cobranças em relação à nossa aparência, que precisa ser impecável, com as unhas feitas, maquiagem, acessórios, assim como a Panmela aparece. Sua performance é muito potente, sendo uma revolta contra a violência direcionada às mulheres”, comenta.

As condições atuais do museu também são debatidas pela curadoria. Fundado em 1982, a instituição enfrenta problemas financeiros. Segundo Labra, o acervo, onde estão guardadas as obras de Bispo, não está em boas condições, sofrendo com infestações de cupins, dentre outras questões. Recentemente, construíram uma passagem subterrânea que dificulta o acesso ao museu. Foi nesse local que a artista Castro realizou sua intervenção, levando as pessoas a ocuparem o espaço. “Esse é um museu em processo, ainda há muitas dificuldades, mas é uma tentativa de criar um centro cultural na zona oeste do Rio, onde há poucas opções”. Em tempos de crise, além de retomar a obra de Arthur Bispo do Rosário, a exposição chama atenção para a necessidade de políticas de preservação e de valorização da cultura, hoje tão ameaçadas.

 

Serviço – Das Virgens em Cardumes e da Cor das Auras
Até 31/01/2017
De terça a sábado, das 10h às 17h
Museu Bispo do Rosário, Rio de Janeiro, RJ
21.3432-2402

 

 


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