O célebre Rijksmuseum, em Amsterdam, reúne um dos mais preciosos acervos de arte da Europa: a história da arte holandesa está lá, mas não apenas. As peças de arte asiática presentes no local contam também sobre o extenso império colonial que o país batavo construiu ao longo dos séculos. A empreitada pelos oceanos fez com que o pequeno país travasse contato com regiões, povos, culturas e animais da África, Ásia, Oceania e América. O resultado dessa troca cultural pode ser observado em diversas obras expostas no museu: negros, indígenas e asiáticos são personagens nada raros retratados nas pinturas.
O museu, no entanto, tem mudado a forma de “apresentar” esses personagens ao grande público. Após queixas de minorias que se sentiam incomodadas com o uso de alguns termos presentes nos títulos das obras, palavras como “Mouro”, “Anão”, “Escravo” e “Selvagem” desapareceram dos títulos das obras. A carga imperialista e racista que muitas delas carregavam fazia com que as minorias que frequentavam o museu não se sentissem à vontade no local. Conforme explicou o diretor de comunicação do museu em reportagem ao jornal português Público, “as minorias também têm de se reconhecer num museu nacional, nas histórias que ele conta. Não queremos ser um museu só para brancos, onde outras etnias não se vejam, onde alguém sinta que tem a obrigação de escrever um manifesto contra o racismo por causa de uma legenda”.
Para Marina de Mello e Souza, professora de História da África da USP, a medida é necessária e se trata de uma readequação da linguagem aos tempos atuais: “A mudança proposta não me parece ser um anacronismo e sim uma adaptação da língua ao tempo atual, pois a língua é viva, os significados das palavras se alteram ao longo dos tempos e o que o museu está fazendo é uma adequação dos títulos ao tempo presente” explica. Os títulos dos trabalhos, segundo a professora, também não são produtos da época das pinturas. “Muitas das obras tiveram seus títulos atribuídos posteriormente à sua produção, portanto em contextos diferentes dos quais foram produzidas.”
A atitude do Rijks também não se trata de um caso isolado. Muitos museus atualmente vêm repensando a forma como expõe seus acervos, de modo a não mostrarem apenas o ponto de vista do europeu e do colonizador, mas também da cultura subjugada. Marina traz exemplos, como o Musée du Quai Branly, que hoje abriga coleções de arte africana e da Polinésia antes expostas no Museu do Homem. Enquanto no antigo museu os objetos eram tratados como pertencentes a culturas primitivas, no atual são tratadas como obras de arte, explica a professora.
Um caso mais extremo já foi explorado pelo Museu da África Central, na Bélgica, que mostrava o Rei Leopoldo II como um herói que havia trazido a civilização para a região da bacia do Rio do Congo, quando na verdade houve ali um verdadeiro genocídio. Atualmente o museu está fechado e sua proposta museológica totalmente reformulada a fim de tratar a produção material do acervo a partir de suas culturas de origem. No caso brasileiro, a professora vê o Museu Afro Brasil como um importante passo na ruptura com o olhar eurocêntrico sobre a cultura africana.
Marina acredita, portanto, que a Holanda “sai na frente ao buscar tratar a diversidade de forma não preconceituosa”. Para ela, não se trata de mudar o texto de uma obra literária, que nesse caso deve ser, sim, contextualizada para ser discutida com o público. “É fundamental adaptarmos a linguagem ao tempo que vivemos e trabalhar sempre para buscar uma convivência harmônica entre os diferentes, em um ambiente de tolerância e respeito mútuo. Se percebemos que uma palavra pode ser ofensiva a um grupo de pessoas, devemos substituí-la por outra que não o seja” conclui.
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