Inaugurado parcialmente em 2016 e em sua totalidade em março deste ano, o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), em Lisboa, se tornou rapidamente uma das instituições de maior destaque no cenário artístico internacional. Sediado em dois grandes espaços à beira do rio Tejo, uma central termoelétrica desativada e um arrojado edifício projetado pela inglesa Amanda Levete, o museu é um dos grandes símbolos da efervescência cultural vivida hoje por Portugal.
Projeto da Fundação EDP (órgão da Energias de Portugal, a gigante do setor energético no país), o museu oferece diferentes espaços expositivos e já apresentou, em menos de um ano, trabalhos do casal Eames, de Clara Ianni, Alexander Brodsky, Wolfgang Tillmans, Lourdes Castro, Francis Alÿs, Carlos Garaicoa, Pierre Huyghe, Olafur Eliasson, Gordon Matta-Clark e muitos outros.
A proposta, levada à frente pelo diretor Pedro Gadanho – ex-curador de arquitetura do MoMA – é colocar em diálogo de modo horizontal, sem hierarquias, diferentes áreas do conhecimento. “Isso permite diluir as fronteiras e não criar guetos”, diz ele. A ARTE!Brasileiros conversou com Gadanho sobre o MAAT, o panorama da arte contemporânea em Portugal, a intensa revitalização urbana de Lisboa e o boom turístico no país, resultado em boa parte do fim da crise econômica. Leia abaixo.
O MAAT é hoje um dos museus mais falados não só na Europa, mas em vários cantos do mundo, seja por sua proposta museográfica, por sua arquitetura ou pelas exposições que já organizou. Queria que você falasse um pouco da proposta do museu, e o que faz dele um espaço inovador no cenário internacional.
O fato de um museu ser dedicado à arte, à tecnologia e à arquitetura já o faz singular, porque reúne três disciplinas que não estão sempre ligadas. É um museu de arte contemporânea, mas onde a arquitetura, a cultura urbana e os impactos que a tecnologia têm no nosso dia a dia são usados como uma espécie de enfoque dentro do campo maior da arte. Isso nos permite focar em artistas que produzem uma reflexão mais direta sobre aquilo que está acontecendo à nossa volta hoje. Nos liberta também do peso de ter que fazer uma retrospectiva histórica e torna algo mais excitante as possibilidades para fazer novas encomendas aos artistas e para trabalhar com temas atuais. Portanto, esta é a nossa pauta e acho que está tendo algum eco positivo. Claro que desde o começo tivemos uma preocupação em estabelecer está conexão com a comunidade internacional, porque sabíamos que tínhamos que nos afirmar em um mundo cheio de instituições muito bem estabelecidas, com grandes museus.
Essa ideia de misturar áreas do conhecimento e linguagens artísticas, e não mais dividi-las, é algo que tem sido uma pauta forte no mundo cultural, na arte contemporânea. Esse é um caminho que faz mais sentido? Entender que as coisas podem caminhar juntas…
Sim. Eu vinha de anos de trabalho na curadoria do MoMA, que é o museu típico da organização moderna da arte, dividida em várias mídias. E lá já se falava dessa compartimentação e da necessidade de romper com ela, mas isso era muito difícil em um museu que havia sido criado sobre essa base. E mesmo quando havia tentativas de mostras interdisciplinares era difícil sair fora dos domínios de cada curador, embora eu já tentasse traçar um trabalho nesta direção, estabelecendo diálogos entre arte e arquitetura. No MAAT se torna mais fácil fazer esse tipo de ligação, porque é um museu que não tem passado e não vive dessa formatação do mundo da arte. Tínhamos uma grande liberdade e um grande interesse em usá-la, não para misturar coisas de forma aleatória, mas para ter os artistas olhando mais para outras áreas e também colocar artista e arquiteto no mesmo nível intelectual, ou seja, ambos como produtores culturais com capacidade para falar sobre o que está acontecendo. Isso permite diluir as fronteiras e não criar guetos. Algumas experiências que eu fiz no MoMA provavelmente aqui teriam mais espaço para se desenvolver.
Falando um pouco sobre o panorama mais amplo das artes em Portugal, parece que o país está vivendo uma efervescência cultural muito forte, e o resto do mundo também parece estar mais atento ao que está acontecendo no país. Como enxerga esse contexto?
Portugal esteve muito isolado até 1974, por causa do regime fascista que isolou-o da Europa, mas a partir daí já começava a haver interesse naquilo que era a realidade cultural portuguesa. Ou seja, houve uma certa vanguarda de curadores, historiadores etc., que já conhecia um pouco do que se fazia no país. Mas de fato foi só com uma geração mais tardia e após a entrada no bloco europeu que começa a haver grandes trocas, com uma possibilidade de mobilidade maior. E começam a ir pessoas daqui para fora, que estabeleceram suas redes, e isso também permitiu que mais gente começasse a conhecer Portugal. Apesar disso, em parte Portugal continuou a ser como um lugar a se descobrir até muito recentemente. E acho que o que está acontecendo, finalmente, junto a um boom turístico, é uma aproximação de novas camadas de pessoas com outro tipo de interesse pelo país, por sua cultura.
Esse boom turístico traz riscos?
Claro, eu espero que não trilhemos aquele caminho como o que foi trilhado em Barcelona, o que chamo de efeito de “barcelonização”, em que a cidade vira-se toda para os turistas e esquece-se de sua própria comunidade e de seus próprios interesses. Mas acho que estão vindo morar na cidade muitas pessoas com grande interesse cultural, e esse cenário, sendo aqui uma capital histórica, acho que vai se manter, e vai ser sempre parte do interesse para que as pessoas venham para cá. Há também, junto aos novos benefícios fiscais, condições que estão criando uma nova economia criativa na cidade, o que permite um efeito de maior duração do que apenas o turismo.
Falando como estrangeiro que sou, acho que muita gente ainda enxerga Portugal como um lugar de cultura mais tradicional, com uma arte mais antiga, histórica, e não tanto como um lugar de arte contemporânea, de experimentação. Mas isso também parece estar mudando. Você também percebe isso?
Acho que houve um efeito positivo da crise, que entrou em 2012 após a crise financeira global de 2008. Houve muita gente saindo do país, por falta de oportunidades, mas, para aqueles que ficaram, houve também uma necessidade de se reinventar e criar outro tipo de atividade criativa. Lisboa era também uma cidade muito barata, o que atrai artistas e gente inventiva. Acho que a combinação desses dois fatores criou uma nova efervescência, considerando as culturas mais jovens, que produzem certo equilíbrio com o que é a oferta cultural mais tradicional da cidade
Existe também um trabalho de revitalização urbana muito forte em Lisboa. Há obras por todos os lados.
Acho que tem muito a ver com o investimento estrangeiro. A partir do momento em que era uma das poucas capitais da Europa em que ainda não havia ocorrido uma grande pressão do mercado imobiliário, descobriu-se que era um lugar bom para investimentos. Ao mesmo tempo que se percebeu que era uma espécie de safe heaven dentro da Europa, porque é uma cidade muito segura. Isso aliou-se a uma maior liberalização das regras de patrimônio, pois havia uma grande dificuldade de reconstruir, de refazer, porque essa área é muito controlada. Então houve uma abertura da cidade que, junto com o investimento, fez uma verdadeira revolução em Lisboa, baseada mais na reabilitação e revitalização do que nas novas construções. Então isso é muito importante, porque privilegia-se agora um tipo de reabilitação feita com muito cuidado, que somado ao fato de termos muitos arquitetos bem formados, possibilita a cidade a evoluir sem se tornar uma espécie de “desastre urbanístico”, como aconteceu em outros lugares.
Parece haver um nível médio muito alto na arquitetura portuguesa…
Não podemos esquecer que antes ainda da arte contemporânea dar o que falar, a cultura arquitetônica é talvez aquela que começa a ser mais reconhecida mundo afora, dentro dos círculos especializados. Por causa de Álvaro Siza, Eduardo Souto Moura (ambos vencedores do Pritzker), entre outros, já havia um grande reconhecimento da produção arquitetônica, e uma grande interligação com o estrangeiro. E esta é talvez a primeira grande exportação cultural portuguesa em tempos recentes.
Como alguém que já morou em outras grandes cidades do mundo, o que sente que ainda falta para Lisboa se firmar de fato como um dos grandes polos globais de arte contemporânea?
O fato é que Lisboa ainda segue sendo, em parte, uma cidade muito tradicional. E, portanto, há fenômenos com os quais quem vive aqui se defronta que têm a ver com burocracia, excesso de regulamentação, o peso político das velhas famílias e uma economia bastante fechada, às vezes pouco receptiva aos mais jovens. Felizmente, as pessoas conseguem romper com isso e fazer novos negócios. Ainda mais agora que há um interesse da cidade em estimular a vinda de empresas mais tecnológicas. Mas há dificuldades no dia a dia muito kafkianas, de tentar resolver um pequeno problema e se deparar com enormes problemas. Isso tem a ver com uma cultura tradicional que se encontra também em lugares como Viena ou Roma, cidades muito antigas onde há poderes instalados há séculos, difíceis de contrariar.
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