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"Habitava Seu Corpo com Dificuldade", obra de Gabriela Vanzetta, premiada com edital da Galeria Transarte
“Habitava Seu Corpo com Dificuldade”, obra de Gabriela Vanzetta, premiada com edital da Galeria Transarte

Debates em torno de questões de gênero têm encontrado ecos nas artes visuais, fora e dentro do Brasil, recentemente. Do não binário ao transgênero, da presença do feminismo ao ativismo de diversas minorias, a arte contemporânea faz uma revisão constante da concepção de gênero vinculada à identidade sexual. A partir de novos olhares, novos sujeitos e novas representações, afasta-se a ideia de que feminino e masculino são categorias monolíticas ou imutáveis, quando, na verdade, são construções sociais atravessadas por outras categorias, como raça, classe social ou identidade sexual. Indagações e discussões sobre gênero ganharam maior visibilidade em São Paulo recentemente, como atestam a exposição Transborda, que esteve em cartaz na Casa Triângulo em outubro, a linha do tempo e as obras do Museu Travesti do Peru apresentadas por Giuseppe Campuzano na última Bienal de São Paulo e o segundo edital LGBT: Gênero e Identidade, da galeria Transarte Brazil, que apresenta, a partir de 14 de novembro, os quatro artistas premiados.

A questão do sujeito multifacetado e multi-identitário em contínuo deslocamento diante da diversidade de identidades possíveis e às lutas no campo dos direitos humanos, que se segmentaram a partir da segunda metade do século XX, transforma o universo artístico em um meio privilegiado de ação política. Não é difícil lembrar das fotoperformances feministas de Cindy Sherman, a obra documental do universo gay nova-iorquino de Nan Goldin, a persona Rrose Sélavy que fez Duchamp travestir-se para performances registradas por Man Ray, os garotos sarados de Copacabana fotografados por Alair Gomes (que também teve exposição em São Paulo recentemente, com sucesso de público e crítica). As obras desses e de outros artistas contemporâneos que trabalham nesse viés temático vão do epidérmico/sexual a densidades conceituais bem mais complexas e de cunho político.

Rodolpho Parigi como Fancy Violence, em performance apresentada na mostra Verbo, na Galeria Vermelho
Rodolpho Parigi como Fancy Violence, em performance apresentada na mostra Verbo, na Galeria Vermelho

A arte é um terreno bastante fértil para colaborações poéticas e políticas, como no trabalho desenvolvido pela galeria Transarte Brazil por meio de residências e editais. Tirar a arte do gueto é a causa, dar visibilidade ao que é feito fora do circuito comercial é a missão das galeristas Maria Helena Peres e Maria Bonomi. “A intenção é tirar da marginalidade a arte de gênero, porque depois de Foucault ninguém quer ficar na superfície, e quem ficar vai sumir”, afirma Maria Bonomi, numa tarde quente na galeria, no parque Trianon, ponto de garotos de programa e, por conseguinte, de vivências sexuais intensas próximo ao Masp.

Voltada exclusivamente às questões de gênero e identidade, a Transarte é uma iniciativa que há quatro anos fomenta as artes visuais a partir de mecenato, convidando artistas para residências que resultam em exposições eloquentes artística, política e sexualmente. A partir do dia 14/11, a Transarte abre uma mostra com os quatro artistas classificados no edital lançado pela galeria, LGBT: Gênero e Identidade – Rafael Bandeira (PA), Bia Leite (DF), Guilherme Gadelha (RJ) e Rodrigo Mogiz (MG).

Frame do vídeo "Faz que Vai", de Bárbara Wagner e Benjamin Burca, apresentado na mostra "Transborda", Casa Triângulo
Frame do vídeo “Faz que Vai”, de Bárbara Wagner e Benjamin Burca, apresentado na mostra “Transborda”, Casa Triângulo

Sobre a coletiva Transborda, que aconteceu em outubro, o curador Yuri Firmeza afirma, no texto de apresentação, que os trabalhos expostos “produzem deslocamentos, fissuras aos gêneros dominantes, criticas cáusticas ao heterofa­locentrismo.” Entre fotografias, vídeos, performance e pinturas, os 12 artistas selecionados vêm de uma borda artística, Fortaleza e Recife, o que funciona como potência e não como limite para a arte, o pensamento ou a política.

Firmeza cita o filósofo e escritor Paul B. Preciado, espanhol nascido Beatriz Preciado, ao comentar a arquitetura da anatomia humana como política: “O corpo como lugar de inscrição da his­tória”. O mesmo desafio de revelar o corpo em suas “coreopolíticas”, para usar terminologia do pensador André Lepecki, é o trabalho diário, e não só artístico, da performer Daniela Glamour Garcia. A transexualidade de Glamour leva o corpo ao centro de seus trabalhos, seja no circuito underground gay paulistano ou nas ruas onde o estranhamento e a dúvida tomam o espectador comum diante da figura andrógina. “Mudar é eterno, estar diferente é eterno. Uma forma específica e única nunca será eterna. Espero mudar muito como pessoa, daqui até o último dia de minha vida”, desafia-se Glamour, em entrevista disponível no YouTube.

"Portrait of Rrise Sélavy", alter ego de Marcel Duchamp, fotografado em 1921 por Man Ray
“Portrait of Rrise Sélavy”, alter ego de Marcel Duchamp, fotografado em 1921 por Man Ray

Enquanto as drag queens desfilam nos clubs e videoclipes, dançando vogue e waacking, e o travestismo ganha cara e voz com a saída do armário do cartunista Laerte, uma figura bombástica e sua banda de rock têm arrasado corações e o circuito de arte. Fancy Violence costuma dizer que “São Paulo é uma cidade cafona” ou “Adoro jogar pedra em foto de metacrilato”. O hilário alter ego de Rodolpho Parigi é uma persona tresloucada que questiona a arte, seus paradigmas e dogmas, mas que também é uma extensão do trabalho erotizado dele como pintor e desenhista. Parigi já disse que Fancy Violence é uma heroína ciborgue que confunde os espectadores e os faz acreditar que a persona está sempre ativa, mesmo quando ele está “desmontado”.

No Museu da Diversidade Sexual de São Paulo, dentro da estação do metrô República, acontece a 1ª Mostra Diversa – Expressões de Gêneros, Identidades e Orientações, até 30 de novembro. A exposição abriga nove projetos de artistas brasileiros que trabalham com fotografia, vídeo, pintura e desenho em diversas frentes dos temas sugeridos no título. Um dos destaques é a iniciativa da Coletânea Amar, composta de quatro livros com aquarelas temáticas sobre diversidade sexual para crianças de 4 a 7 anos. O objetivo é bastante claro: apresentar questões de sexualidade e gênero sem preconceitos, desde cedo.


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