O abandono da arte

"7000 eichen" (1982-87), Joseph Beuys. Crédito: Dieter Schwerdtle/Arquivo documenta
“7000 eichen” (1982-87), Joseph Beuys. Crédito: Dieter Schwerdtle/Arquivo documenta


Poucos artistas
tiveram uma ação tão radical no século XX quanto Joseph Beuys (1921-1986). Fundador do Partido Verde alemão, defensor da democracia direta e ecologista, a militância sempre foi uma faceta importante de sua atividade artística.

No campo da arte, Beuys defendia a ideia de “escultura social”, uma estratégia em conciliar a prática artística com a intervenção social, como ocorreu na obra Sete Mil Carvalhos. Em 1979, por ocasião da Documenta de Kassel, Beuys e moradores locais plantaram sete mil carvalhos, na esperança de transformar a árida cidade alemã, uma das mais destruídas na Segunda Guerra Mundial. Hoje, Kassel é um exemplo de “escultura social” e muitos habitantes da cidade ostentam o diploma de participantes da obra.

Em sua essência, Beuys era um crítico dos sistemas de exclusão. Ele foi expulso da Universidade de Düsseldorf, em 1972, por defender que suas aulas deveriam ser assistidas por qualquer um e não apenas pelos matriculados em suas classes – isso em um país onde a maioria das universidades é pública. Como forma de seguir ensinando, o que ele considerava sua mais importante atividade, ele criou, em 1983, a Freie Internationale Universität (Universidade Livre Internacional) junto a outros colegas, no seu próprio ateliê em Düsseldorf.

Dois anos depois, criou uma série de nove pequenos cartões com fundo escuro como uma lousa, em que escreveu à mão, com giz, frases como “Com isso abandono a arte”, em uma atitude um tanto semelhante ao que Lygia Clark havia feito quando passou a utilizar um método terapêutico e deixou de criar obras de arte. Em outro, o artista alemão escreveu: “O erro já começa quando alguém se prepara para comprar uma tela”. Beuys o fez, não por acaso, no momento do chamado retorno da pintura, quando, após quase duas décadas de produção conceitual, da qual ele sempre foi um dos grandes expoentes, o mercado de arte criava condições para recuperar o valor de algo que já tinha sido desconsiderado como uma prática artística efetiva.

"Demokratie ist lustig" (1973), Joseph Beuys. Foto: Divulgação
“Demokratie ist lustig” (1973), Joseph Beuys. Foto: Divulgação

Sem dúvida, o descontentamento com esse sistema, que trouxe o retorno de um modelo arcaico, impulsionou Beuys a anunciar seu “abandono à arte”. Três meses depois, ele morria, aos 64 anos. Por isso, mostras comerciais dedicadas à sua obra, como a que ocorreu recentemente na galeria
Bergamin & Gomide, tornam-se mero apelo ao fetiche. Por mais que possam trazer obras exemplares no percurso do artista – como o Terno de Feltro (1970), uma referência à forma como ele foi tratado após a queda de um avião da esquadra nazista do qual era piloto: feltro e banha foram os elementos que curaram suas queimaduras.

Encontra-se aí, aliás, uma das contradições da arte contemporânea: trabalhos produzidos por artistas marginais, que criaram suas obras em contextos anti-institucionais e que se utilizaram do mercado de arte apenas para circular suas obras, acabam sendo consumidos pelos mesmos donos do poder que são fonte da revolta desses artistas. É como se, daqui a 50 anos, os cartazes que mais de uma centena de artistas produziram defendendo a democracia brasileira em abril passado fossem comercializados por galerias.

Sendo assim, parece fazer todo sentido que o britânico Joseph Corré, filho da estilista e rainha do punk Vivienne Westwood e do empresário da banda punk Sex Pistols, Malcom McLaren, tenha anunciado em março que pretende queimar toda a  coleção de seus pais, estimada em US$ 7,1 milhões (R$ 25 milhões). Corré, ao contrário das famílias de muitos artistas, mais interessadas em viver de suas obras do que de fato preservar suas memórias, introduz uma questão essencial: o que foi feito para ser revolucionário merece ser tratado como mercadoria?


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