As andanças, típicas do artista de sucesso na contemporaneidade, quase sempre, levam o andarilho a dedicar um olhar descuidado, superficial ou, até mesmo, anestesiado, perante as diferentes realidades por onde transita. Não é o caso de Alex Flemming, que tem o hábito de levar sempre consigo um diário de viagem, no qual anota suas reflexões sobre os mais diferenciados aspectos dos lugares visitados e de seus habitantes. Nos diários de viagem, o artista demonstra não apenas sua curiosidade, mas também sua adesão ou seu repúdio frente as situações vividas. Tudo lhe interessa e tudo é anotado sem hierarquia, desde aspectos relevantes, como fatos históricos, até as ocorrências mais prosaicas, como um anúncio impresso em um jornal local de alguém que solicita companhia para enfrentar a solidão do cotidiano. Muitas dessas anotações são incorporadas a seus projetos artísticos.
Ao homenagear o telescópio, Flemming joga com metáforas e com poéticas que tratam do tema da visão, do olhar, ou seja, de um dos elementos essenciais da linguagem artística – o saber ver. O telescópio (do grego tele que quer dizer longe e scopio que quer dizer observar) é um instrumento que permite estender a capacidade dos olhos humanos, permite observar objetos longínquos. Ou seja, olhar longe é um dos objetivos do artista, ir até os limites da consciência possível de seu tempo.
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A história registra que, em 1608, Hans Lippershey, fabricante de lentes holandês, construiu em Middelburg, pequena cidade dos Países Baixos, o primeiro telescópio. A notícia rapidamente chegou ao conhecimento de Galileu Galilei, que em 1609 apresentou um aparelho feito por ele mesmo a partir de experimentações e polimento de vidro. Nesse mesmo ano, Galileu apontou seu telescópio para o céu noturno para observar a Lua e foi o primeiro a usar esse tipo de aparelho para investigação astronômica. Certamente, por isso, o instrumento ficou conhecido popularmente como luneta.
Para realizar a instalação na Pinacoteca, Alex reuniu 50 globos escolares que giram sobre toca-discos. Segundo afirma o próprio artista, “o globo simboliza o mundo que é cada um de nós, todos iguais, mas ao mesmo tempo todos diferentes. Cada um em sua rotação, uns muito rápidos, outros já quase parando, outros inclusive já parados para sempre. E os toca-discos são uma espécie de arqueologia do cotidiano, que recupera parte da parafernália elétrico-eletrônica com a qual cada um de nós se cerca na tentativa de ser feliz”.
A proposta do artista foi apresentar um conjunto que contraria as observações de Galileu, provocando um jogo instigante de contradições com a história. Os globos, ou os planetas de Alex, não giram em torno do Sol, nem obedecem a nenhuma lógica sistêmica, astronômica. Giram em torno de si mesmos, como individualidades, com rotações variadas, lentas ou aceleradas. Alguns globos simplesmente não giram e são meros figurantes entre bailarinos. Com essas variantes de rotação e com desempenhos diferenciados para cada globo, Flemming criou um conjunto estimulante e provocador, pelas ilações e pelas interferências de outras lógicas e de outras realidades. Envereda por novas poéticas. Sugere diversas alegorias, a de individualidade (cada globo girando em torno de si mesmo) e de sociabilidade (a dinâmica dos 50 globos).
Os movimentos silenciosos dos toca-discos e as relações formais entre a esfera e o disco criam situações de coreografias visuais que nos seduzem e podem, até mesmo, provocar efeitos hipnóticos pela constância e pela articulação cronométrica dos conjuntos em movimento.
A utilização de ícones da história e não apenas da história da arte é uma atitude recorrente na sua obra. Na instalação da Pinacoteca o próprio título chama nossa atenção para os fatos históricos ocorridos na Itália no século XVI e reavivam na nossa memória o conflito entre a ciência e a religião, entre a verdade e o poder. Galileu, para não contrariar dogmas da Igreja, foi obrigado pelo Tribunal da Inquisição a retroceder nas suas conclusões sobre o heliocentrismo, sob a ameaça de prisão e morte. Não há dúvida de que o significado extraordinário desse conflito motivou Alex Flemming. Os temas da injustiça e da violência sempre instigaram o artista e estão presentes nas diversas fases da sua produção. Talvez, ao dar título a essa instalação, Flemming tenha pensado na frase de Galileu: “A verdade é filha do tempo e não da autoridade”.
Antes de iniciar sua carreira, Alex esteve ligado ao cinema, hoje pouca gente se lembra disso. Realizou sete curtas-metragens em super-8. Contudo, a experiência cinematográfica incorporou-se ao seu olhar, ao seu modo de abordar os mais variados temas. Na sua primeira exposição, realizada em 1978, Alex mostrou obras de forte caráter documental – eram nove fotogravuras que compunham a série Natureza Morta. Esse pequeno conjunto impressiona pela sua contundência, pela crueza e pela violência de suas imagens, que denunciam o absurdo da tortura. Cenas de corpos fragmentados, dentes sendo arrancados por alicates, o pênis sendo eletrocutado. Na época, em plena ditadura militar, a dor escancarada nas gravuras adquiria grande força dramática e provocava nossa consciência por retratar situações que faziam parte da realidade.
Nos projetos seguintes e ao longo de sua vasta e diversificada carreira, Alex Flemming não perdeu o olhar cinematográfico e documental. Mesmo nas obras em que esse olhar não é prevalente, percebemos seu apreço ao documento, como quem, por meio dele, procura dar mais veracidade à sua poética. Na série Alturas, os sofás usados e os animais empalhados são documentos que tentam deter a caminhada do tempo ou se preferir são testemunhos que atestam nossa solidão, nossos desejos e frustrações.
A partir da série Alturas, Flemming passou a acrescentar letras, que inicialmente tinham a função de escrever o nome dos retratados e depois passaram a ter novo protagonismo – revelavam e ocultavam conceitos e poéticas. Textos de Haroldo de Campos, de Heinrich Heine eram gravados na superfície da tela, mas a disposição das letras dificultava sua leitura. Os textos seguem uma lógica particular a cada série. Por exemplo, nos móveis pintados, Alex reuniu textos de anúncios de jornais. Nos retratos realizados para a estação Sumaré do metrô paulistano, o artista selecionou um poema para cada personagem, sempre de autores diferentes, abrangendo um vasto período da poesia brasileira – de José de Anchieta a Haroldo de Campos e Torquato Neto.
Tudo que se refere ao corpo fascina o artista. A juventude e sua beleza, a carnalidade no êxtase e na dor, mesmo as frias ilustrações de anatomia ou os trabalhos de taxidermia. Eros acompanha toda a obra de Alex Flemming, revela desejo febril perante um corpo jovem e decepção perante a escatologia do tempo. A beleza física é efêmera e a juventude fugaz.
Em 1987 inicia as telas Atletas e muitas dessas imagens foram retomadas em 1989 nos Body-builders. Nas duas séries há a clara intenção de seduzir, entretanto, nos Body-builders há sedução e violência política. O corpo masculino é retratado frontalmente, coberto por uma sunga que revela o volume de seu conteúdo, o tórax musculoso sobre o qual Alex fundiu à pele mapas e geografias que se referem a conflitos armados, como Bósnia e Oriente Médio. As telas respiram erotismo, mas trazem também a presença da morte e suscitam ainda questões sobre o tempo e a transitoriedade da vida. Na entrevista a Henrique Luz, o artista afirma: “Na série política de Body-builders utilizei textos do Antigo Testamento que pregam a guerra e o extermínio do outro”.
Em 1990, eu era diretor do Museu da Arte de São Paulo e Alex Flemming propôs realizar uma instalação na escadaria do museu situado na avenida Paulista. O artista chamou-a de Tauromaquia – Ex-Touros e era composta de diversas cabeças de touro empalhadas (daquelas que são exibidas em churrascarias), pintadas de um azul que lembra Yves Klein e dispostas sobre latas de lixo, e colocadas de ponta-cabeça sugerem colunas gregas. As cabeças foram colocadas ao ar livre ladeando os degraus que davam acesso ao museu. Os Ex-Touros abriram caminho para a instalação O Sacrifício que foi realizada, no ano seguinte, na XXI Bienal Internacional de São Paulo e serviu de rito de iniciação para os inúmeros trabalhos de animais empalhados que se seguiram na sua obra. Nesta época, Alex Flemming frequentou o Museu de História Natural de São Paulo, que não era aberto ao público, e convenceu os professores e os cientistas a lhe doarem animais empalhados que seriam incinerados por já estarem deteriorados ou porque não tinham mais interesse científico. “Com esse lixo da ciência montei minha participação na Bienal”, diria mais tarde o artista.
Flemming nunca deu suas costas para a história, para a conjuntura social e política. Muitas obras tratam explicitamente dos conflitos políticos, das ideias e das polêmicas de seu tempo. Pouco depois da ação terrorista às torres gêmeas de Nova York e em pleno período de retaliação militar ao Iraque e Afeganistão, desenvolveu o projeto Flying Carpet com obras feitas a partir de tapetes persas que eram recortados para assumirem as formas de silhuetas de aviões de caça ou de bombardeio norte-americanos.
Suas obras estão presentes nos principais museus brasileiros. Nos últimos anos realizou uma grande exposição com curadoria de Ana Mae Barbosa no CCBB (RJ e SP) e recentemente apresentou no Masp uma belíssima instalação fotográfica com temas da devoção popular e do nosso imaginário religioso.
A instalação de Alex Flemming Sistema Uniplanetário – In Memorian Galileu Galilei é um de seus últimos trabalhos e foi exposto pela primeira vez em 2008, nas ruínas da Igreja St. Johannes Evangelist, em Berlim, espaço utilizado por artistas e que se situa em lugar privilegiado da agitada vida artística e cultural da capital alemã.
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