O banquete da transgressão

Ao encontrar o artista Guto Lacaz na exposição I in U – Eu em Tu, de Laurie Anderson, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo, ele me contou – em frente à obra O Arco de Neon, que olhávamos para seu primeiro contato com Laurie – que no disco Big Science a contracapa do LP trazia a autora tocando um violino com o referido arco. Os trabalhos da norte-americana, no início dos anos 1980, foram embriões da arte experimental, ao mesclar o corpo, a tecnologia e a música, colocando-os em contato com elementos do cotidiano. Permaneceram também suas reflexões sobre a tecnologia – transformando, por exemplo, um aspirador de pó em arma.

A exposição fez um apanhado da produção de Laurie. Há desde ótimos vídeos de suas performances até uma grande mesa de madeira, no centro da cúpula do CCBB, em que, colocando um punho na superfície e a outra mão no ouvido, o som reverbera pelos ossos do visitante, e estórias são transmitidas, tendo o próprio corpo como meio da mensagem. Essa obra foi feita, segundo Laurie, para se contrapor ao barulhento ambiente do entorno do museu.
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Marcello Dantas assinou a curadoria da exposição, dando continuidade ao seu incansável trabalho de expansão da arte para toda a população. Responsável também pela direção artística do Museu da Língua Portuguesa, o mais visitado do Brasil, Dantas começou sua carreira como videomaker para em seguida expandir sua atuação a todas as etapas do processo artístico. “Em meu grupo, o Coletivo BijaRi, levo a arte para as ruas, afasto-a do elemento comum museu.” Dantas, porém, subverte esse espaço museu, sua linearidade, para fundir elementos da cultura pop com o erudito e torná-lo um lugar mais atraente. Usa as técnicas do espetáculo sem com isso ser espetacular. Consegue com a marca muitas vezes desagregadora de nosso tempo, a tecnologia, inverter sua lógica e aproximar a criação do cotidiano das pessoas.

A crítica comum ao trabalho de Dantas é a superficialização, causada pelo impacto das tecnologias, que deixa de lado a reflexão. Seria o que o teórico Marshall McLuhan chamaria de um “meio quente” – alta concentração de informações e vivências sensoriais, que causariam grande impacto, mas pouca interação com a obra. Dantas consegue esfriar, com os elementos tranquilizadores da arte, esse calor da tecnologia. Ele esquenta, requenta, remexe e consegue ao final o sabor da comida caseira preparada em antigas panelas de barro, mas com temperos frescos. Todos se deliciam e tentam adivinhar cada ingrediente que compôs o prato.

O trabalho de curadoria e produção artística pode muitas vezes deixar esquecido o Marcello criador. Mas ele é um educador artístico, faz o diálogo da arte com o dia a dia, e a torna acessível a todos. Hoje as pessoas discutem o direito, as decisões do Superior Tribunal Federal (STF) são debatidas e caiu o velho chavão de que as leis devem apenas ser analisadas por juízes, advogados e “doutores”. Esse movimento está acontecendo também na arte, tornando-a tão presente quanto a média com pão na chapa na padaria.


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