O cartunista de todos os estilos

"Desenho" (1967), publicado em Veja, 10.09.1969. Foto: Acervo Millôr Fernandes / Instituto Moreira Salles
“Desenho” (1967), publicado em Veja, 10.09.1969. Foto: Acervo Millôr Fernandes / Instituto Moreira Salles


O acervo iconográfico
do Instituto Moreira Salles recebeu, no início de 2013, um grande corpo de trabalho ainda pouco explorado: a gigantesca obra gráfica que Milton Viola Fernandes, conhecido como Millôr Fernandes (1923-2012), produziu ao longo da vida. Tratava-se de aproximadamente seis mil desenhos, cartuns, aquarelas, colagens, montagens e charges. 

Muito conhecido pela sua produção escrita e jornalística, o lado “gráfico” de Millôr permaneceu, pelo correr das décadas, em segundo plano, quase esquecido. O autor teve como vetor de suas criações visuais os jornais e as revistas, ficando por isso fora do meio artístico. Além dele, cartunistas como Ângelo Agostini, Araújo Porto-Alegre, J. Carlos e muitos outros que retrataram e pensaram o Brasil e seu cotidiano ainda permanecem relativamente desconhecidos no cenário artístico nacional.

Millôr se definia como um “escritor sem estilo”. As filiações ideológicas e estilísticas causavam verdadeiro pavor no humorista, que via nessas classificações um  aprisionamento da criatividade. Embora tenha usado tal frase para se definir enquanto escritor, a máxima vale também para a obra gráfica. A “falta de estilo” de Millôr começa justamente a partir do uso que faz das linhas. Quase sempre distorcidas, exageradas e por vezes ultrapassadas, elas são uma espécie de limite ao qual o humorista tem verdadeiro prazer em transgredir. Se não transgride a linha, ele pode anarquizá-la dentro de seus limites, com borrões de tinta ou caos de situações e personagens. Esses últimos, sejam eles humanos, sejam animais, são distorcidos, bizarros e engraçados. A linha para Millôr é uma arena de anarquia e criatividade. Um bom exemplo disso é um trabalho em que há um desenho primário, quase infantil, que representa uma paisagem mal desenhada e alguns peixinhos nela presentes. Esses são todos limitados por um conjunto de cercas e estão quase confinados no canto da imagem. Do outro lado da cena se lê, pintado com tinta aquarela azul em letras garrafais: Capitalismo. Vale lembrar que a paisagem não faz menção alguma à água, os peixes circulam por ali como se fosse normal. Do mesmo jeito que, em tantos outros trabalhos, personagens e cores passeiam pelo cenário de forma caótica, profusa e desordenada, tal como se estivessem em um oceano mal delimitado pela linha. Dentro do universo milloriano, talvez todos fossem peixinhos em um mar.

A mistura de suportes é outra característica marcante do humorista. O repúdio ao critério e à classificação se manifesta abertamente ao longo dos suportes em que o artista trabalhou: não se pode distinguir precisamente o que ali é charge, cartum, desenho, colagem ou aquarela. Era comum que ele usasse todas essas características em um mesmo trabalho. Um deles é, à primeira vista, uma folha de papel quadriculado, dessas provindas de cadernos de geometria. Na linha inferior da folha, vemos uma sucessão de arcadas discretamente desenhadas, e de uma das arcadas centrais entram e saem pessoas, fazendo daquela folha de caderno um prédio. Prédio/folha esse que, muitos quadrados acima, abriga um diálogo entre dois personagens, no qual um deles vira e diz ao colega: “Eu lavo e você enxuga”. São limpadores de vidros de prédio. Outro caso é o do meteorologista que, provavelmente escravo de uma redação de jornal, vê as mudanças climáticas das quais noticia unicamente como notas escritas de um jornal, e não tal como são. Para produzir o efeito, o artista recorta trechos da previsão do tempo de um jornal e os pendura fora da janela da sala da qual está o personagem.

Apesar da insistente negação de estilo, é possível perceber um diálogo de Millôr com outros cartunistas e artistas. A explosão de cores presente em muitos de seus trabalhos e com as mais diversas finalidades pode nos remeter a Miró. Os jogos que realiza com as linhas e as cores dialogam de alguma forma com Picasso. Não à toa ele reproduz como seria o célebre quadro Guernica um dia antes da tragédia que inspirou Picasso. A mesma confusão que povoa o quadro do artista espanhol aparece na criação de Millôr, mas alegre e colorida. Muitas das piadas e trocadilhos presentes na obra gráfica de nosso artista podem ser detectadas nos trabalhos de cartunistas contemporâneos seus, como Jaguar e Ziraldo. Mesmo o traço escrachado e mal delimitado é também recorrente na obra dos dois cartunistas, especialmente na de Jaguar, que, assim como Millôr, usa e abusa da falta de perspectiva e dos traços grotescos e exagerados nos personagens.

A negação das grandes correntes por parte de Millôr o coloca em um distanciamento com diversos estilos e temas da história humana. Esse distanciamento, no entanto, não isola o humorista, mas o deixa em condição ainda melhor de produzir um diálogo com esses estilos e temas. Absorvendo um pouco de cada coisa, ele pôde a partir disso misturá-las e criar seu próprio material. Uma espécie de antropofagia cultural, como disse Oswald de Andrade. Pensando assim, Millôr Fernandes talvez não seja propriamente um cartunista sem estilo, mas sim de todos os estilos.

Serviço – Millôr: Obra Gráfica
Até 21 de agosto
Instituto Moreira Salles
Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea – Rio de Janeiro/RJ
21 3284-7400


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