Começo minhas anotações sobre o filme O Caso Dora, ainda no escuro da Sala Antônio de Cinema, recém-inaugurada na Galeria Vermelho. A artista Dora Longo Bahia, diretora do filme, atingiu outra dimensão artística no seu expandido universo de arte composto de pintura, instalações, performances. Reafirma sua entrada no rol dos artistas que fazem filmes, unindo artes visuais e cinema na representação do gesto artístico, que retoma as dimensões mais vivas da arte: o movimento, a experimentação, a história e o mundo contemporâneo.
Resultado do pós-doutorado da artista, com orientação de Vladimir Safatle, em O Caso Dora é a grandiosidade do desejo inconsciente que mobiliza o trabalho, um compêndio particular de acontecimentos reais mesclados com ações regidas por movimentos secretos e processos invisíveis. A personagem Rosa, interpretada pela atriz Camila Rocha, é uma paciente histérica e suas sessões psicanalíticas são centradas em suas dúvidas e inseguranças sobre ser artista. O filme reflete o impacto da criação artística em cada momento da história e Dora Longo Bahia faz a recuperação de episódios sociais, filosóficos, políticos, que são alinhavados também pelo fio da solidão. Uma solidão que deve ser compartilhada com alguém, com o outro, esse outro original a quem evoca o filme, que não qualificamos de inconsciente, apesar de ser baseado na ideia de Lacan.
O filme recoloca acontecimentos que marcaram épocas, dando conotação à sua essência secreta. As condutas íntimas também foram abordadas e o público é confrontado com uma insuportável realidade de amputação, dor, impotência, revolução, guerrilhas contemporâneas. A problemática do simbolismo sexual também pulsa entre linhas e sai diretamente do divã de um psicanalista. O título, O Caso Dora, faz referência ao primeiro caso publicado por Freud em 1905, considerado, ainda hoje, um texto paradigmático por apresentar os dispositivos centrais de sua teoria sobre a histeria.
Fica latente ainda a influência de Jean Luc Godard, autor de A Chinesa, classificado por ele como “filme-acontecimento”, por apresentar uma narrativa entre a ficção e a documentação, misturando atores e ativistas e estabelecendo um comentário crítico sobre a época em que o filme foi rodado. O Caso Dora, embora tenha como fio condutor a psicanálise, envolve igualmente situações político- ideológicas atuais, como os movimentos políticos de rua. A diretora comenta a personagem como alguém “desprovida de uma linguagem capaz de articular sua falta de liberdade, e que discorre sobre a arte de maneira atormentada, imersa em uma atmosfera irreal”. O filme foi construído a partir de três eixos que se intercalam e se contaminam: ficção, documentação e falsificação. Essa contaminação nos leva a uma “performance” com um casal vivendo uma relação sadomasoquista. O corpo feminino adquire o estatuto de um desconhecido de quem é preciso aproximar-se progressivamente até desvendá-lo.
Em meio ao clima psicanalítico, uma sequência surpreende o espectador com a leitura de dezenas de “manchetes” sobre fatos que mudaram a história contemporânea, como: O homem chega à Lua/ Brasil decreta o AI 5/ EUA bombardeiam o Vietnã/ Morre Mao Tsé-Tung/ Fidel Castro se torna presidente/ Indira Ghandi é assassinada/ Cai o Muro de Berlim/ Nelson Mandela sai da prisão/ Vaticano reconhece o Holocausto/ Terroristas explodem as Torres Gêmeas em Nova York/ Morre Yasser Arafat/ Saddam Hussein é enforcado/ Barack Obama se torna presidente/ Osama Bin Laden é assassinado pelas forças norte-americanas/ Kadafi é linchado e morto.
Todo esse emaranhado faz de O Caso Dora uma obra provocativa em que cada uma de suas partes tem vida própria. Reafirma que a artista representa o seu tempo, com todas suas ambiguidades, e faz um filme com narrativa caleidoscópica, própria dos trabalhos experimentais. Um desses prismas traz à tela a obra Olympia, de Manet, de 1865, apresentada no Salão de Paris. O quadro que escandalizou a sociedade francesa, sendo taxado de imoral e vulgar, retrata uma modelo nua recostada no sofá – Victorine Meurent, que também posava para Degas e Toulouse-Lautrec, entre outros pintores.
A diretora retoma essa tela, em que a modelo encara o observador, confrontando-o com seu estatuto de mercadoria. Ela introduz muito bem esse quadro, rebatendo-a no filme com outros planos, nos quais as personagens estão exatamente na mesma posição de Olympia: a paciente histérica, em uma sessão psicanalítica e uma performer travestida de Olympia, proferindo um “discurso” pessoal.
Dora Longo Bahia se mostra uma artista, decididamente polêmica, em todas as áreas em que atua. Seu filme chegou a nós em um momento certo, cheio de dúvidas e apreensões. Mesmo que se eliminem todas as imagens de O Caso Dora, ainda temos uma obra poderosa que se sustenta, por ser também um trabalho filosófico. Quanto à sua personagem inspiradora, a paciente histérica de Freud, ela continua e continuará a provocar outros autores, de todos os matizes, em todos os tempos.
Serviço – O Caso Dora
Até 4 de junho
Galeria Vermelho, Rua Minas Gerais,350,São Paulo
Grátis. 70 minutos.
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