O chamado de Berlim

A primeira vez que morei em Berlim foi na década de 1980, muito antes da queda do Muro. Aliás, para qualquer pessoa que conhecesse as duas cidades, Berlim Ocidental e Berlim Oriental, a queda do Muro em 9 de novembro de 1989 foi uma total surpresa, de tão sólido ele parecia. E, diga-se de passagem, demorou ainda alguns anos para ele realmente desaparecer, pois na mente de muitas pessoas ele ainda divide.

Vim para cá sem saber muito o porquê, atendendo a um chamado Berlin ruft (Berlim chama) dentro de alguma parte de mim: talvez algo carmático, sei lá. Uma parte ancestral de minha formação alemã ou talvez, mais especificamente, de minha formação luterana. E aqui, nos anos 1980, era possível experimentar um laboratório existencial como em nenhum outro lugar do planeta: do lado ocidental uma vida louca, dinâmica, frenética, onde tudo era permitido, desde homossexualismo a ocupações de casas. Onde à noite eu podia ir à ópera e de repente ver mulheres bastante idosas, cobertas de joias e até com tiaras de diamante, e que simplesmente eram princesas de verdade, o que restava de uma realeza imperial. Do lado oriental um regime espúrio, uma ditadura eficientíssima que de “comunista” só tinha o nome, pois as benesses da sociedade não eram para todos, mas somente para os que pertenciam ao partido ou para os informantes da temida Stasi (polícia secreta). Aqui, nestes dois pedaços, havia o germe das grandes revoluções e aqui é que se pode dizer que ruiu o comunismo de Estado à la Stalinismus. Tudo era esquizofrênico. No lado oriental não havia nada o que comprar, tudo era proibido, jornais só os do partido – porém, você ligava a TV e pegava os programas do lado ocidental, com todas as informações possíveis. Só não podia falar que estava vendo aqueles programas (era proibido, imagine só…).
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Em vez de falar sobre as galerias e o marketing de arte em Berlim, prefiro trilhar os caminhos mais seguros das instituições e dos museus, onde a etapa “especulação” ou “dúvida” já tenha sido ultrapassada. Berlim é a cidade por excelência da preservação do que é memória cultural, tanto estética como puramente histórica. Uma das grandes questões da história da arte alemã é que aqui muitas vezes se considera o histórico documental também como arte, abrindo o conceito de Zeitgeist de uma maneira inusitada. As instituições de arte contemporânea mais espetaculares são duas coleções privadas abertas ao público com hora marcada: a Coleção Boros, que fica dentro de um bunker no centro de Berlim, e a Coleção Hoffmann, onde se entra na casa do casal Hoffmann até em seu quarto de dormir e onde ele toma café da manhã com os netos, rodeado de Sugimotos, Rochters ou Pipilotti Rists.

O grande Museu de Arte Contemporânea, sem dúvida nenhuma, é a imbatível Hamburger Bahnhof, localizada em uma antiga estação de trens, e que abriga várias coleções particulares doadas à cidade de Berlim, sendo as mais importantes a Coleção Marx (com o maior Mao Tsé Tung que Andy Warhol pintou) e a Coleção Flick (com muitos artistas que praticamente nunca vemos no Brasil, como Jason Rhodes, Franz West e Martin Kippernberger).

Há também o Museu Berlinische Galerie, sempre com exposições pontuais, como agora uma que fala da arte que foi feita a partir da queda do Muro. O Georg Kolbe Museum, situado no próprio ateliê do artista Georg Kolbe, mais voltado à escultura e aos objetos, que realizou há alguns anos uma magnífica retrospectiva de um alemão que se refugiou no Brasil nos anos 1930: Ernesto de Fiori. Na área do demolido Palácio da República (comunista) foi erigido um grande galpão que é o Temporäre Kunsthalle, onde se mostra, por exemplo, o trabalho de Bettina Pouttschi.

Na Casa das Culturas do Mundo, as exposições são sempre abrangentes e coletivas, como, por exemplo, Arte Brasileira da Coleção Chateaubriand ou Arte Contemporânea da Índia. A Fundação Helmut Newton foi criada para preservar o acervo deste grande fotógrafo e expõe também obras de pessoas que trabalharam com ele. A Neue National Galerie, o belíssimo prédio de Mies Van der Rohe, além do melhor acervo de século XX, traz exposições individuais que são a consagração definitiva no Olimpo germânico: atualmente estão em cartaz as fotos feitas sobre obras descartáveis em papel de Thomas Demand. E, last but not least, há todos os outros 20 museus de arte histórica, cuja nova pérola é o Bode Museum somente com escultura gótica. Haja sola de sapato…


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