O desafio de Heitor Martins

Quando abre a porta de sua casa no Morumbi, de camiseta e sorriso sereno estampado no rosto, Heitor Martins não parece ser o consultor financeiro que desde julho se divide entre a McKinsey e a presidência da Fundação Bienal de São Paulo. Mas passado o jardim, a sala com obras de Tunga, Miguel Rio Branco e Farnese de Andrade dão a certeza de que, para além dos altos e baixos do mercado, Martins tem olho para arte.

Depois da gestão conturbada de Manoel Pires da Costa à frente da fundação que controla a maior mostra de arte do país e a segunda mais tradicional do mundo, Martins foi saudado como messias. Era uma esperança para tirar do buraco uma instituição afundada em dívidas e escândalos com o poder público. A última edição da Bienal, que deixou vazio o segundo andar do pavilhão por falta de verbas e foi pichada na noite de abertura, ficou fixada como imagem da crise.
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Martins agora faz de tudo para reverter esse quadro. Aceitou ser presidente da Bienal depois que Andrea Matarazzo e o ex-embaixador Rubens Barbosa recusaram o cargo. Desde que assumiu, reformou a diretoria, nomeou novos conselheiros e conseguiu quitar as dívidas da fundação, em torno de R$ 4 milhões. E já garantiu a mostra deste ano que começa em setembro.

Com a casa em ordem, chamou Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias para assumir a curadoria da próxima edição, que já tem 38 artistas confirmados. Estarão na mostra obras de Steve McQueen, Chantal Akerman, Anri Sala, Hélio Oiticica, Flavio de Carvalho, Nuno Ramos, Paulo Bruscky, entre outros. Ou seja, os medalhões da arte global e brasileira, contraste flagrante com a última enfraquecida edição do evento.

Isso porque Martins quer devolver a Bienal de São Paulo, a segunda a surgir, depois da Bienal de Veneza, ao patamar da mostra italiana e da Documenta de Kassel, as outras duas exposições de arte contemporânea mais importantes do mundo.

Silas Martí – A última edição da Bienal de São Paulo, apelidada “Bienal do Vazio”, prejudicou a imagem da mostra no Brasil e no mundo. Como se sente assumindo o comando do que muitos esperam seja a Bienal da retomada?
Heitor Martins –
Essa é mais uma etapa dentro de um contexto histórico. A Bienal tem ciclos. Teve um período fantástico no início, nos anos 1950, todos dizem que a Bienal de 1953 foi uma das maiores mostras da história. Nos anos 1970, foram anos muito difíceis. Nos 1980, ela se reposicionou um pouco, os 1990 foram anos esplêndidos. A década passada é marcada por um período de reflexão, o Brasil passa por mudanças. A 27ª Bienal inicia a discussão sobre o modelo da mostra, o fim das representações nacionais. Começa essa reflexão mais aprofundada.

S.M. – E como vê a próxima Bienal na esteira dessas?
H.M. –
A gente está consolidando essas discussões e propondo um novo modelo. Estamos buscando definir qual é o papel dessa instituição dentro da sociedade. É um desdobramento disso tudo. Vejo isso como um momento fantástico, estamos traçando um plano de ação. A gente olha para esse tipo de mostra como uma plataforma. Toda a indignação com a “Bienal do Vazio” foi uma indicação de que a sociedade não queria o fim da Bienal. Se isso fosse insignificante, ninguém teria ficado indignado. Nós vislumbramos isso como uma plataforma de consolidação. É assegurar que a Bienal fique no mesmo nível que Kassel e Veneza. Vamos nos certificar de que a instituição cumpra um papel forte, fazer uma itinerância, promover ações coordenadas, fazer tudo isso de forma transparente.

S.M. – Desde que assumiu a presidência da Fundação Bienal, houve uma reforma interna da instituição. O que foi feito para preparar essa nova fase da Bienal de São Paulo?
H.M. –
São três princípios fundamentais. Um é o trabalho em equipe. A gente criou outro conceito de diretoria, com a ideia de trazer pessoas novas para o conselho. Outro é a reaproximação com artistas, galeristas, empresários, o poder público. A terceira coisa é manter uma transparência de propósitos, ou uma clareza dos propósitos, para que as pessoas entendam o que se quer fazer.

S.M. – Qual seria então a maior meta dessa gestão?
H.M. –
Vamos reinserir a Bienal como uma das três maiores mostras do mundo. Ela é uma das três principais mostras do mundo, ao lado da Bienal de Veneza e da Documenta de Kassel. Não vamos nos acanhar. É um papel histórico da Bienal. Vamos colocar esses princípios em prática e a partir daí a gente começa a demonstrar ações.

S.M. – Por isso sua equipe tem profissionais tão diferentes?
H.M. –
São pessoas com perfis distintos. Eu sou consultor, trouxe pessoas do setor financeiro, duas do setor artístico. Também está lá o Justo Werlang, que tem uma experiência à frente da Bienal do Mercosul, já tem uma visão.

S.M. – Antes de sua eleição, os conselheiros da Bienal discutiram uma aproximação entre a Bienal de São Paulo e a Bienal do Mercosul, chegando a sugerir uma fusão das mostras. Acredita que a identidade da Bienal de São Paulo é outra, distinta?
H.M. –
As mostras que são capazes hoje de fazer esse recorte da produção contemporânea são a Documenta de Kassel, a Bienal de Veneza e a de São Paulo. Convidamos 50 artistas internacionais e todos aceitaram prontamente. Nos diálogos com as instituições internacionais, todos se interessam, querem participar. Tem um grande poder de convocatória essa Bienal, um status que as outras não têm, uma identidade muito clara.

S.M. – Mas para retornar a esse patamar de excelência, foi preciso por a casa em ordem. Foram quitadas as dívidas da Bienal e o dinheiro para a próxima edição está garantido em grande parte. Como isso foi feito?
H.M. –
Isso é uma condição higiênica. Não é botar em ordem as coisas. A Bienal não é uma instituição complexa, que precisa de muito para se manter. Mas se você quer fazer mostras capazes de receber artistas do mundo inteiro, fazer um recorte da produção mundial, isso custa. Se você quer atingir 400 mil alunos com ações educativas, preparar 15 mil professores e monitores, isso custa. O desafio não é manter a estrutura. A gente tem o apoio da sociedade, e isso faz com que a gente tenha conseguido recursos do Ministério da Cultura, doações do setor privado. É viável pensar que num país como o nosso é possível fazer uma Bienal desse porte.

S.M. – Não é necessário então que a Bienal tenha uma estrutura e recursos permanentes para dar conta disso?
H.M. –
A gente tem buscado ter recursos permanentes. Estamos fixando compromissos, ações que possam ser plurianuais. Isso deve criar um vínculo institucional, as bases para um modelo de reposicionamento, de uma forma que os patrocinadores também desfrutem dos benefícios de suas ações, que haja transparência, um sentido de propósito.

S.M. – O que já está estruturado em caráter permanente?
H.M. –
Temos duas áreas importantes. Uma delas é para a captação de recursos junto a empresas, ao Estado, ao município. É uma equipe que oferece apoio aos patrocinadores, ajuda a encaminhar projetos à Lei Rouanet, faz prestação de contas. Essa estrutura não existia antes. Outra equipe é a da comunicação, que faz a ponte com os segmentos da sociedade. A gente tem contato direto com a prefeitura, o Estado, o Ministério da Cultura, o site, que é um veículo onde as pessoas podem buscar informação. Temos reuniões com os galeristas, fazemos um boletim mensal para o conselho, reuniões quinzenais com a curadoria.

S.M. – Acredita que até hoje a Bienal carecia de transparência, desse contato?
H.M. –
Não é que a Bienal não fosse transparente, mas ela foi muito hermética, comunicava pouco.

S.M. – Parte da reabilitação da Bienal também se deve ao estreitamento de laços com o poder público. Como estão essas relações agora?
H.M. –
Com a prefeitura, temos uma relação quase umbilical. Por causa do prédio da Bienal, que pertence à prefeitura, há um aporte anual, além de um diálogo fluido. O MinC ajuda endossando projetos, aprovação deles na Lei Rouanet. Também já garantiram R$ 4 milhões para a reforma do prédio da Bienal, instituiu o programa Brasil Arte Contemporânea, uma parceria com a Bienal em que contribuem com R$ 1,8 milhão. O governo do Estado apoia o projeto de colaboração com os museus do Estado.

S.M. – Qual é o orçamento da próxima Bienal e quanto dos recursos já estão garantidos?
H.M. –
Nossa meta é ter R$ 30 milhões. Temos doações do Itaú, do Banco ABC, do Fibra, da Oi, da própria McKinsey. O Itaú sozinho entrou com R$ 8,25 milhões. A relação antes era muito distante, houve uma reaproximação.

S.M. – É um orçamento da ordem das grandes exposições mundiais. São Paulo se equipara a elas ou acredita que esta Bienal tem uma identidade diferente?
H.M. –
A Bienal de São Paulo olha o mundo com um olhar diferente, do ponto de vista de São Paulo, do Brasil, um lugar que tem um dinamismo maior do que Veneza, ou Alemanha. É uma visão menos eurocentrista, com outra lente. É importante ver isso na equipe curatorial, com dois brasileiros, um indiano que nasceu na África do Sul e hoje mora em Londres, um angolano, uma diretora de um museu de Barcelona, outra de Miami, outra de Tóquio. É um tipo de pluralidade. Nem Kassel nem Veneza tem o espaço expositivo que a gente tem, um edifício livre, em que a arquitetura não determina a posição das obras. Não é toda fragmentada como Veneza.

S.M. – Mas também por estar fora da Europa, a Bienal de São Paulo deve assumir o papel de suprir as carências de museus locais? Acredita que deve se propor a trazer obras históricas, nunca vistas no país?
H.M. –
Tem de separar o papel da Bienal e dos museus. Essa leitura histórica cabe nos museus. A exposição até poderia fazer mostras de caráter mais museológico, mas uma coisa não deve contaminar a outra, justo porque estamos buscando parcerias com museus. A gente tem de trazer os maiores nomes da produção contemporânea atual, não é um show de jovens talentos. Uma coisa é fazer a mostra, outra é a relação com o público. É ressaltar o caráter educativo da mostra, que as pessoas vejam o mundo de forma que nunca viram antes. Tem a formação de professores e o grupo de monitoria. A Bienal deve fazer uma mediação entre arte e público.

S.M. – Como estão os preparativos para o programa educativo?
H.M. –
Já foi feita a capacitação de 750 professores. Vamos fazer agora a primeira publicação do material educativo. A tiragem desse material vai ser de 40 mil. Será um programa de ressonância com a cidade, tudo isso faz parte de uma mediação educativa. Só o programa educativo é 20% do orçamento da Bienal. A gente também quer fazer disso uma estrutura permanente da instituição.

S.M. – Como se dá o diálogo entre a presidência da Bienal e a curadoria?
H.M. – Temos uma divisão muito clara entre o que é a curadoria e o que é a direção. A curadoria trabalha com total liberdade. A direção cuida dos aspectos de produção. Para a gente também vai ser uma surpresa.

S.M. – E como será o diálogo da Bienal de São Paulo com a representação brasileira na Bienal de Veneza?
H.M. –
A representação brasileira na Bienal de Veneza deveria ser um desdobramento da Bienal daqui, que seja um reflexo do que foi aqui.

S.M. – Acredita que a mostra também possa ajudar a alavancar o mercado no País?
H.M. –
Existe um sistema da arte, os museus, a Bienal, a crítica, os colecionadores. Todos fazem parte do sistema e ele não existe sem as galerias, nem sem os museus, as instituições, a mídia. É um ecossistema. A Bienal cumpre um papel de catalisador, de concentração de ações. As coisas não andam sozinhas. O momento que o Brasil vive no mundo, a nossa arte, as nossas galerias passam por uma ação virtuosa. A arte tem um impacto que vai muito além da arte propriamente dita, cria um ciclo econômico. A atividade artística tem um valor agregado puro, é uma das atividades mais nobres dentro da cadeia. Isso é um poder econômico. Em Londres, a capital financeira mundial, o setor das artes contribui mais para a economia do que o setor financeiro. São Paulo tem uma grande vocação para ser um grande centro, investindo mais nas instituições, mais nos museus.

S.M. – O que falta para São Paulo chegar lá?
H.M. –
Precisa derrubar barreiras institucionais, tributárias, alfandegárias, mudar o sentimento de que arte é uma coisa de elite. Arte é uma coisa de desenvolvimento. As instituições precisam ter o desejo e os recursos para adquirir obras. Arte é muito intimidadora, mas não tem nada a ver com riqueza. Todo mundo pode se maravilhar com isso. Você não precisa ser o dono da obra para desfrutar dela.


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