Realizar uma obra única, capaz de congregar e ressignificar múltiplos trabalhos e 35 anos de reflexão artística: este é o intuito da antologia que Ana Maria Tavares realiza na Pinacoteca do Estado, encerrando em grande estilo as comemorações dos 110 anos de aniversário do museu e reafirmando o interesse da instituição em tornar-se um espaço de reflexão e divulgação da arte contemporânea brasileira. Como numa espécie de intrincado quebra-cabeça, no qual cada peça ganha novo sentido a partir do contexto em que é inserida, a exposição não apenas traz a público os destaques da produção da artista e permite estabelecer importantes e luminosas conexões entre momentos-chave de sua pesquisa como investiga e subverte o próprio espaço do museu, na sua relação com o público. “Para nós, interessava muito finalizar essas comemorações com a mostra de uma das mais significativas artistas brasileiras das últimas décadas, cuja primeira exposição individual ocorreu na Pinacoteca”, explica o diretor do Museu, Tadeu Chiarelli.
A percepção e a organização do espaço do prédio centenário na avenida Tiradentes foram completamente alteradas pela artista, desestabilizando práticas já arraigadas. Esse rearranjo inverte o modo de deslocamento do prédio, retomando o eixo principal estabelecido por Ramos de Azevedo, que conduz da antiga entrada, na avenida Tiradentes, ao acesso ao Parque da Luz; um caminho que leva do artifício da cidade grande à reconstrução da natureza. Outra alteração profunda adotada pela artista é a transformação dos corredores laterais em protagonistas dessa grande paisagem expositiva.
Normalmente periféricos e marginais, eles são ativados em toda a sua extensão pela Parede Loos, trabalho que parte da casa idealizada pelo arquiteto modernista Adolf Loos para a estrela negra Josephine Baker. A artista procura destacar, em sua análise do projeto, como ele carrega latente, sob seu purismo arquitetônico, um discurso de poder e voyeurismo, do “corpo tornado território”, com aspectos eugenistas e colonialistas. Avesso a qualquer tipo de ornamento, Loos adota para a residência de Baker (que jamais foi construída e nem se sabe se teria sido encomendada pela cantora) uma fachada de listras horizontais pretas e brancas, que remete à cor de sua pele, a uma padronagem exótica e à estampa dos uniformes de presidiários. É essa trama um tanto hipnótica que acompanha o visitante pelas rotas periféricas do museu, sem impor caminhos precisos, e torna-se ela própria permeável e diluída pela natureza na videoinstalação Sinfonia Tropical para Loos.
Além dessa ideia de labirinto e da recusa a critérios cronológicos de organização, a mostra contempla ainda outros aspectos centrais da trajetória de Tavares nas últimas décadas, como, por exemplo, a revisão crítica da arquitetura modernista; a realização de objetos na fronteira entre design e arte; a construção de suportes para o corpo de caráter interativo – que ela chama de “próteses de arquitetura” –; ou a relação entre artesanato e indústria, como explica a curadora da exposição, Fernanda Pitta.
Dentre as 160 obras que compõem a mostra, número que inclui também uma vasta documentação, há obras inéditas e outras raramente vistas. Um Jardim para Burle Marx, realizado em 2013 com artesãs de Fortaleza e que traduz a ideia de jardim numa grande escultura coletiva, em tons de preto, cinza e branco, nunca havia sido mostrada em São Paulo. O trabalho Tapetes Negros para Paredes Brancas, que integrou a primeira exposição individual da artista em 1981, também volta à cena, depois de passar por um processo de restauro.
Há sempre no trabalho de Tavares um embate entre obra, espaço e sujeito, num processo de sedução e crítica, de fina ironia. E uma clara recusa em destituir as obras de seus conceitos, reduzindo-as a mero mostruário do que já foram algum dia. Esse processo de ressignificação fica evidente, por exemplo, na grande instalação criada para o octógono. O espaço nobre perde sua função nuclear e transforma-se no palco de uma ação de “radical reflexividade especular”. Fechado em si mesmo e completamente espelhado, de alto a baixo, o espaço torna-se, nas palavras da artista, “um campo aberto e infinito”, que ecoa e funde o espaço do museu, as esculturas da artista (Exit 3, uma instalação sonora na forma de uma escada de avião que não leva a lugar nenhum, e Carrossel para Duchamp, de 1997) e o próprio espectador. “Eu me vejo, vendo o outro, na obra mesma”, sintetiza.
Serviço -No Mesmo Lugar: Uma Antologia de Ana Maria Tavares
De 19 de novembro a 10 de abril de 2017
Pinacoteca de São Paulo
Praça da Luz, 02, São Paulo, SP
11 3324-1000
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