Mar é uma palavra masculina em nossa língua. Porém, entendemos que é casa dos orixás femininos Iemanjá e Oxum. La Mère et la Mer (a mãe e o mar, em tradução do francês). São a imensidão, a força, a maternidade, a fertilidade, a sedução, a saúde da mente, a riqueza, a bondade e mais e mais. Museu, por sua vez, também é geralmente masculino, mas não sempre. A exposição Tarsila e Mulheres Modernas no Rio, aberta no MAR – Museu de Arte do Rio, mostra uma reunião impressionante de obras da pintora Tarsila do Amaral, mas se configura como um projeto ainda mais tocante, importante e socialmente ambicioso ao exibir poderosos momentos históricos de protagonismo feminino no Rio de Janeiro e no Brasil entre os séculos XIX e XXI. A exposição manifesta seu feminismo com um posicionamento declaradamente pedagógico, bastante coerente com um museu cuja característica fundamental é ter uma programação de exposições que serve a um projeto educativo – e não o contrário, como acontece normalmente nesse tipo de instituição.
Essa não é uma exposição exclusivamente formada por obras de arte produzidas por mulheres. A mostra não se limita a objetos de arte e nem se restringe a criações de autoria feminina. Os curadores Hecilda Fadel, Marcelo Campos, Nataraj Trinta e Paulo Herkenhoff contextualizaram o feminino na capital fluminense e no País também com trabalhos elaborados por artistas homens, além de diversos documentos e objetos da cultura popular, como máquinas de escrever, capas de discos, trechos de músicas, edições de livros, etc. Muito além de ser apenas uma mostra que critica a visibilidade menor dada às artistas mulheres nos espaços expositivos, Tarsila e Mulheres Modernas no Rio tem a ambição de recontar a história do Rio de Janeiro, evidenciando a importância delas na formação da nossa cultura e sociedade.
A montagem expõe nas paredes laterais nomes de relevantes personalidades femininas, artistas e não artistas do Brasil: desde Anita Malfatti até Tia Ciata, de Gabriela Leite a Zina Aita, de Carmen Miranda a Nise da Silveira. A opção por ter os nomes escritos em branco sobre faixas horizontais de madeira, pintadas com o mesmo tom de azul escuro das paredes, cria o efeito de ter essas mulheres quase que ganhando corpo e envolvendo a exposição, quase como se desenhassem uma constelação ou evocassem a presença e a força de cada uma. Além disso, altas vitrines apresentando recortes especiais da pesquisa (como “arte e loucura”, “maternagem” ou “a invenção do lugar moderno”, entre outros) acompanham ritmicamente os lados do espaço como se fossem as colunas femininas de sustentação da história e da cultura do Rio e do Brasil. Os painéis atravessam diagonalmente a sala, aproximando ou afastando suas extremidades e conteúdos e apresentando eixos como “praia”, “Semana de Arte Moderna” e “a desconstrução do mundo puritano”, além de apresentar duas grandes homenagens: a Clarice Lispector e a Maria Martins.
A parte dedicada à escritora, que já foi citada e homenageada em outras mostras no MAR, apresenta trechos de sua autoria associados a trabalhos de Fayga Ostrower, Anna Bella Geiger, Mira Schendel e Jeanete Musatti (artistas oriundas de famílias judaicas, como a da escritora), além de Lygia Pape e Anna Maria Maiolino, com seu clássico Por um Fio, de 1976. Livros da autora, como Correio Feminino ou Só para Mulheres mostram uma comunicação para sujeitos femininos, indicando, talvez, uma chave importante para entender os desejos dessa exposição. Podemos ver também uma estranhíssima pintura a guache sobre compensado, de autoria de Lispector.
A seção destinada a Maria Martins é um dos grandes momentos da mostra. Martins é apresentada como uma das mais radicais artistas da modernidade no Brasil, e os curadores conseguiram reunir um grupo muito impressionante de esculturas dela, que são apresentadas contra um fundo luminoso e leitoso, gerando uma situação de meia-luz tão sabidamente ideal para cópulas.
Os trabalhos de Tarsila estão todos juntos em uma das extremidades da exposição. Há algumas surpresas boas na seleção que expõe as principais características, interesses, coerências e incoerências da produção da pintora. Se entendida como uma sala final de circuito, é interessante perceber como os diversos eixos apresentados durante a mostra nos encaminham para um entendimento maior da obra da artista.
Há um momento curioso quando, sob o título Construção de um Novo Rio, apresenta-se uma pesquisa que assinala a centralidade das mulheres da história da construção e direção do MAM-Rio. Lota Macedo Soares, Carmen Portinho, Niomar Muniz Sodré, Lygia Clark e Thereza Miranda são algumas das mulheres que conduziram, de formas diferentes, a construção daquela instituição. Associar a “construção de um novo Rio” ao funcionamento de um museu evidencia as ambições de Paulo Herhenhoff para o MAR, que ele dirige desde a fundação.
As mostras do MAR – Museu de Arte do Rio não devem ser entendidas destacadas de sua programação. A dinâmica da sequência das exposições se assemelha à continuidade dos capítulos de um livro e revela os compromissos conceituais e políticos dessa casa, como, por exemplo, com as comunidades em seu entorno, com a investigação da história e do imaginário do Rio de Janeiro, com a história do povo negro no Brasil e com a cultura das regiões Norte e Nordeste. A escolha dos conteúdos responde a uma direção muito coerente e, por vezes, de maneira muito interessante, podemos ver trabalhos de mostras passadas se repetirem nas novas, em novos contextos, com outros sentidos. Alguns desses trabalhos compõem a já importante coleção do MAR, e outros fazem parte de outras quase cem coleções externas que emprestaram obras para essa mostra.
Tarsila e Mulheres Modernas no Rio é uma exposição cuja pertinência não se restringe apenas por se opor às recorrentes seleções que apresentam maioria ou totalidade de artistas homens. Sua maior relevância vem do fato de tratar da cultura além da arte, de se entender como agente social importante e de oferecer história para gerar libertação, perspectiva. A exposição entende por “mulheres modernas” aquelas cuja atuação apresenta ruptura dos sistemas anteriores. São essas as práticas oferecidas ao público feminino para se conhecer, inspirar, identificar, projetar, alimentar. É indispensável dizer que todos os eixos de pesquisa da mostra são apresentados junto a textos que ostentam sujeitos femininos, conjugando verbos de ação como liderar, fundar, construir, organizar, marcar, mudar. Como lembramos bem, a presidenta Dilma Rousseff inaugurou o MAR com a presença de uma ministra da Cultura. Do lado de fora, coletivos de mulheres. É esse o tempo. Museu, cidade, mulher, política e ação.
Tarsila e Mulheres Modernas no Rio
Até 20 de setembro
MAR – Museu de Arte do Rio
Praça Mauá, 5 – Centro – Rio de Janeiro/RJ
21 3031-2741 – museudeartedorio.org.br
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