A história, como dizia Gramsci, é a história dos homens que se juntam a outros homens, a muitos homens e a todos os homens do mundo para lutar, trabalhar, fazer o melhor a si mesmo e à sociedade. León Ferrari (1920-2013) não era necessariamente um gramsciano, mas um ativista político sério, como alguns artistas de sua geração. Em 1976, exilou-se em São Paulo munido de uma abordagem crítica desprovida do clichê contemporâneo de militância e ajudou a impulsionar a consciência política e artística do País.
As quase 100 obras expostas em torno do tema León Ferrari: Entre Ditaduras, em cartaz no Masp, pertencem ao acervo do Museu e são testemunho de seu embate contra as forças antidemocráticas que se instauraram na América Latina nas décadas de 60, 70 e 80. Sua obra tem sido um estudo de caso para muitos teóricos, mas não o objeto de estudo. O que mais intriga nesta mostra/homenagem é o modelo quase matemático de suas heliografias que podem ser lidas como forma de organização da burocracia a serviço da repressão. León Ferrari fez dezenas de versões deste trabalho, especialmente quando esteve exilado no Brasil, mostrando o percurso quilométrico feito por uma pessoa em busca de informações sobre desaparecidos, sem nunca chegar a lugar algum. Ele tinha humor e estômago para criar este labirinto onde a procura dispara múltiplas releituras da dissolução da vida. Entre Ditaduras é como um álbum familiar com histórias que se dividiram por dois países. Seu jeito de pensar era complexo, com potência e alcance para iniciados… em ditaduras.
As duas salas do Masp são igualmente inquietantes e acolhem os trabalhos como “refugiados” de um período de horror. Sua inteligência minimiza os fatos, como atestam os quase 100 trabalhos que criticam e questionam os regimes militares e a onda de autoritarismo que acometeu a América Latina durante a década de 70. Com a curadoria do diretor artístico Adriano Pedrosa, da curadora-adjunta do Masp Julieta González e do curador Tomás Toledo, Entre Ditaduras mostra um León Ferrari promotor da vanguarda conceitual e política na Argentina que começa a trabalhar com escultura metálica em 1962 e a indagar, ao mesmo tempo, a relação linguística entre a imagem e a escritura em seus Quadros Escritos. Estes poemas e notícias desenhados antecedem o grupo inglês Art & Language, de 1969. De 1966 a 1970 a Guerra do Vietnã passa a ser tema central de sua obra.
O Masp tem um acervo representativo doado por León Ferrari. Se estabelecermos um recorte nessa coleção, sobressaem as heliografias, as fotocópias, duas pinturas, duas esculturas e um objeto. O conjunto não é grande, mas o suficiente para teorizar seu universo. Com exceção de dois trabalhos preliminares dos anos 1960, os demais foram executados em seu exílio de mais de uma década em São Paulo. Todos os trabalhos trazem as marcas de um momento em que a desmaterialização da obra de arte e a sua dissolução na vida se materializariam em ação política como construção estética com outros suportes, com novo público e uma inserção institucional diferente, neste caso em museus como o MAC, a Pinacoteca, e ainda na Bienal de São Paulo e em outros locais da capital paulista.
A primeira série, que se relaciona com seus livros de artista Homens e Imagens e as Heliografias, recorre à linguagem visual do desenho técnico e arquitetônico para representar os vários aparatos ideológicos impostos pelo Estado para controlar sistematicamente o dia a dia do cidadão. O segundo grupo – que inclui imagens de seu livro de artista Parahereges, bem como a série Releitura da Bíblia – aborda religião e Igreja, criticando suas posições conservadoras a respeito de sexualidade e preceitos sociais. Os trabalhos em gravura e fotocópias revelam o contexto no qual Ferrari trabalhava sob ditaduras, tanto na Argentina quanto no Brasil. Durante sua permanência em São Paulo, entre 1976 e 1990, “incendeia” instituições como a Pinacoteca do Estado com performances antológicas, quando não se sabe quem é o escultor, o músico, o poeta. Toda sua linguagem é permeada por experimentação, fricção social e política.
León Ferrari chegou a São Paulo quando a repressão argentina multiplicava seus tentáculos. No início, a ditadura ainda poupava o centro Di Tella, instituição com cultura transgressora e massa crítica influente. Com o tempo, o “templo da vanguarda” também acabou na malha dos militares, que viam na instituição um potencial aliado comunista para “dominar o mundo”. Assim, a obra A Civilização Ocidental e Cristã, de 1965, foi censurada. Essa violação o ajudou na ressignificação de objetos banais, convertendo-os em instrumentos políticos. Em sua última entrevista a mim concedida, em Buenos Aires, ele leu o que havia dito na época: “Não importa a operação estética de transmutação estética, mas a associação de ideias que surge a partir da montagem”. Com essa arma, Ferrari nunca mais baixou a guarda.
Ao regressar definitivamente a Buenos Aires nos anos 1990 ele continuou seu trabalho crítico, intransigente, criando colagens perturbadoras com temas religiosos. Até a sua morte em 2013 León Ferrari foi um artista íntegro, coerente e tenaz. Mais do que isso, um ativista irreverente e criador. Viva o Leão!
León Ferrari: Entre Ditaduras
Até 21 de fevereiro de 2016
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp)
Avenida Paulista, 1.578 – Bela Vista – São Paulo/SP
11 3149-5959 – masp.art.br
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