O mecenato aposta na arte como mediadora do real

IMG_9952
Sam Bardouil e Till Fellrath na comemoração dos 25 anos do Prêmio Montblanc em Veneza


A Fundação Montblanc de la Culture
comemora 25 anos este ano e convidou o alemão Till Fellrath e o libanês Sam Bardaouil para serem os curadores e cochairmans da instituição com o objetivo de gerir a coleção e desenvolver novos projetos. Muito jovens e muito ativos, os dois são fundadores da Art Reoriented, plataforma multidisciplinar, baseada em Nova York e Munique, e foram os curadores do pavilhão libanês no Arsenale, na 55ª Bienal de Veneza, em 2013. Este ano fizeram parte ainda da equipe de coordenação da 20ª Bienal de Sydney. Em suas práticas curatoriais, exposições sobre questões contemporâneas e sobre a história dos países árabes são recorrentes, a exemplo de I Spy Whith My Little Eye: A New Generation of Beirut Artists, apresentada no Art Reoriented, e Mona Hatoum: Turbulence, no Arab Mudeum of Modern Art, em Doha. Eles desenvolvem ainda pesquisas junto ao The Institut National d’Histoire de l’Art (INHA), em Paris; no Haus der Kunst, em Munique; e no Museu of Modern Art (MoMA), em Nova York. Atualmente, se preparam para abrir, em outubro, no Centre Pompidou, em Paris, a maior exposição sobre o surrealismo no Egito, com o título Baby Elephants Die Alone – Rupture, War, and Surrealism in Egypt (durante as décadas de 1930 e 1940). Entrevistamos os curadores na ocasião da entrega do Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage, que ocorreu em maio em Veneza.

ARTE!Brasileiros – A Fundação Montblanc foi fundada em 1992. De lá para cá várias marcas internacionais investem em instituições e projetos ligados à cultura. Existe uma discussão no mundo das artes que questiona se o curador, nessas instituições, consegue ter liberdade suficiente para desenvolver seu trabalho. O que vocês têm a dizer a respeito?

Till Fellrath Gostaria de falar sobre o papel do curador.  Na verdade, há uma questão clara e uma resposta clara. Acho que não houve realmente uma mudança essencial no papel do curador. A base é exatamente a mesma que você conhece. Você estuda arte, acumula conhecimento e acontece que, a partir de um determinado momento,  tem que tomar conta de uma série de funções dentro de uma organização, como captação de recursos ou a comunicação. Acho então que o papel do curador mantém o mesmo núcleo. O que ocorre é que, eventualmente, o curador tem que assumir novas funções para fazer os projetos acontecerem – especificamente a captação de recursos, que tem uma importância crescente, já que o curador é quem tem uma relação direta com os proprietários das peças e conhece a história dos projetos. Ninguém está envolvido no projeto de exposição mais do que o curador, não importa onde você vai realizá-la. Um exemplo é o show que vamos apresentar  no Pompidou no próximo outono. Trabalhamos no projeto por cinco anos. É absolutamente impossível para qualquer outra pessoa que venha simplesmente para organizar ter as mesmas conexões, a mesma perspectiva e clareza que está na enorme rede que cada curador construiu durante o desenvolvimento do projeto. Isso significa fazer um pouco mais do que é o seu papel. Acho ainda que deve haver uma distinção muito rigorosa entre o comercial e o não comercial, que claramente se alimentam um ao outro. É necessário escolher um papel claro, muito claro.  Nosso trabalho como membros da direção da Montblanc de la Culture é ligado aos aspectos sem fins lucrativos e nada mais que isso. Desejamos nos tornar ativamente os guardiões de uma grande coleção e descobrir maneiras de crescer numa perspectiva curatorial que envolve a pesquisa como base,  dando à fundação um perfil claro.

Sam Bardaouil Quando você fala sobre a questão comercial ou os aspectos monetários no mundo das artes e no mundo filantrópico e a relação com a criação curatorial ou artística, está falando de forma e conteúdo. O dinheiro pode fornecer o espaço, o dinheiro pode fornecer uma fundação, pode fornecer a possibilidade de adquirir um trabalho: esta é apenas a estrutura, a forma. O importante é a responsabilidade de lidar com esses recursos. O conceito de patrocínio tem evoluído ao longo dos séculos de muitas maneiras diferentes. Às vezes, no passado, esteve a serviço do mecenas, como consequência de uma determinada mensagem. Por exemplo, a propaganda de Estado. Você pode pensar em um milhão de exemplos. Acho que agora chegamos a um ponto onde a filantropia existe como proposta de agregar valor para o público e isto é, na nossa opinião,  o que acontece com a Fundação Montblanc de la Culture. A fundação não empurra a coleção de uma determinada maneira ou para um determinado programa, pelo contrário. Definitivamente, há muitas coisas importantes que foram conquistadas.  Agora vamos estudar e refletir sobre o que entendemos ser os pontos de força da coleção: a coleção foi construída não através de aquisições no mercado secundário e sim pelo convite a artistas que foram comissionados para fazer obras sobre certos temas ou ideias relacionadas com o que a Montblanc defende, a ideia da importância do trabalho e da criação artesanal, por exemplo. O comprometimento com o artista é muito importante.

A coleção da Montblanc está reunida em um lugar específico?

SBSim, a coleção fica na sede da Montblanc em Hamburgo, o que permite  também o contato direto de todos os funcionários com a arte. Todo mundo tem acesso à coleção, é só organizar as visitas.

TFEstamos numa fase inicial, algumas das coisas que temos discutido é como ampliar a coleção “geograficamente”. Talvez mostrando parte da coleção em outros lugares ou envolvendo projetos de artistas de outros países que podem estar subrepresentados na coleção atual. A ideia é que a coleção seja inclusiva, abra as fronteiras e se concentre muito no processo de trabalhar em estreita colaboração com artistas. Ao mesmo tempo que decidimos apoiá-los na criação de novas obras, desenvolvemos a coleção.

De fato, o conceito de residências de artistas fora do seu país e sua cultura é antigo, mas hoje tem sido uma tendência em crescimento. O que vocês querem dizer quando afirmam que estão interessados em questionar a visão convencional da história da arte e seus mecanismos tradicionais de compreensão?

SB – Existem duas questões no pensamento tradicional da história da arte. A primeira, que defende a ideia de um percurso linear, onde há um ponto de começo e na sequência as coisas são adicionadas cronologicamente. E a segunda é que a história da arte é eurocêntrica. Para nós, é o contrário. Viajamos muito e ficou totalmente claro que o fazer arte é realmente intertemporal, porque as ideias que podem ter sido a base para uma obra de dois mil anos atrás são as mesmas.  Hoje você pode executar de forma diferente a obra, talvez graças à tecnologia, mas o pensamento artístico é exatamente o mesmo: o desejo de transmitir algo, uma emoção por exemplo. Isso é atemporal. Nossa forma de pensar envolve a geografia, não é completamente verdade que a história da arte começa em um lugar e depois se expande. Na verdade, ela vai e vem em uma negociação global contínua. Os grandes centros precisam da entrada de ideias internacionais e são essas ideias que fazem cidades como Nova York ou Paris tão interessantes, porque o mundo levou para lá a própria história e suas próprias referências visuais. Por isso, não é uma questão de quem faz primeiro e quem fez isso melhor. Uma ideia pode ser transferida de um lugar para outro através de uma obra de arte, através da escrita e isso cria novos pensamentos, novos sentimentos, sensações diferentes. É muito importante não ficar preso nessa linha.

Solange Farkas, fundadora da Associação Cultural Videobrasil, tem um trabalho muito forte relacionado a esta ideia que vocês descrevem: o pensamento do sul. Vocês conhecem?

SB – Sim, absolutamente. Fomos parte do júri do Festival Videobrasil em outubro de 2015 e a discussão também foi sobre essas questões. Acho que eles estão fazendo um grande trabalho. Estão discutindo, se abrindo a artistas que vêm de outras partes do mundo e trazem a questão de até que ponto o sul pode ser claramente definido, ou se é uma ficção, tanto como a Europa é uma ficção, a América é uma ficção ou a América Latina  e a África são uma ficção, e o que temos é apenas um termo aproximado. Em todo caso, há algo a ser dito sobre aqueles países que estão no sul.

Vários dos trabalhos que vocês desenvolveram estão ligados aos países árabes. Contem um pouco sobre isso.

SB – Eu sou do Líbano, daquela parte do mundo e, mesmo que tenha vivido em tantos outros lugares, a minha perspectiva vai ser sempre a de alguém que conhece aquela linguagem, aquela cultura, de quem cresceu ouvindo determinadas músicas, que comeu determinados alimentos. Mesmo a forma de vestir-se faz parte de quem você é, demonstra uma certa sensibilidade e forma de ver as coisas. Nesse sentido, acho muito especial a nossa colaboração, minha com Till, pois através dela tenho a possibilidade de enxergar muitas coisas de diferentes perspectivas. Isso nos permite não cair em certas armadilhas que às vezes existem quando se está preso no seu próprio mundo.

Além da responsabilidade na fundação, vocês desenvolvem vários projetos internacionais, certo?

TFSim. E isso é uma ótima maneira de pensar sobre essa coleção, nesse tipo diferente de projeto, de desafio. Sem dúvida, essa nomeação torna mais ricos os outros projetos que estamos fazendo e vice-versa, e por isso é uma grande oportunidade assumir essa posição. Também estamos pensando de fato globalmente porque a fundação é realmente global, eles têm uma base no Brasil e no mundo todo.

 


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.