Quando a Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage foi criada pela Secretária Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, em 1975, e entregue à gestão luminar de Rubens Gerchman (1942-2008), o futuro artista plástico Marcio Botner tinha 5 anos de idade. Aluno da EAV no começo dos anos 1990, Botner voltou a integrar a rotina da escola, como professor, entre 2004 e 2012. Desde junho de 2014, ele preside a Oca Lage, organização social responsável pela gestão da EAV e também da Casa França-Brasil, dirigida agora pelo crítico Pablo Léon de la Barra. Com o controle da Oca Lage, a EAV parece ter alcançado a tão sonhada estabilidade operacional perseguida ao longo de seis anos por Claudia Saldanha, ex-diretora da escola. Em julho de 2014, ela pediu demissão da EAV e foi substituída, a convite de Botner, pela jornalista, crítica e curadora Lisette Lagnado.
Em entrevista à ARTE!Brasileiros no palacete que sedia a EAV, Botner e Lisette recordaram episódios históricos da instituição e defenderam a manutenção de um programa capaz de atrair o público flutuante do Parque Lage, que muitas vezes ignora a existência da escola. “Aos finais de semana, o parque recebe uma média de 4 a 5 mil visitantes por dia. Nossa ideia é ocupar os espaços externos e aproximar esse público. No momento em que estudei aqui (entre 1991 e 1994), a escola enfrentava sérias dificuldades financeiras e quase sofreu ação de despejo. A EAV tem agora a oportunidade de alcançar um grupo maior de pessoas”, diz Botner.
Eventos como o Domingo no Parque – que reunirá performances, atrações musicais, espetáculos teatrais e atividades educativas – devem antecipar o objetivo do presidente da Oca Lage. Iniciado no dia 1° deste mês de março, em celebração aos 450 anos do Rio de Janeiro, o Domingo no Parque promoverá encontros mensais até setembro de 2015, ocasião em que serão encerradas as celebrações aos 40 anos da escola carioca, palco de exposições históricas para a arte contemporânea brasileira, como a coletiva Como Vai Você, Geração 80?. Realizada ao longo de um mês, entre julho e agosto de 1984, a mostra reuniu 123 artistas e deu maior visibilidade a talentos como Leda Catunda, Beatriz Milhazes, Leonilson, Sérgio Romagnolo, Chico Cunha, Daniel Senise, Angelo Venosa, Jorge Duarte e Frida Baranek. Eternizado como locação de dois clássicos do Cinema Novo, Terra em Transe, de Glauber Rocha, e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, o Parque Lage foi também reduto de influentes artistas e intelectuais, como Mario Pedrosa, Helio Eichbauer, Roberto Magalhães, Celeida Tostes, Gastão Manoel Henriques, Claudio Tozzi, Sergio Santeiro e Lélia Gonzalez.
Celebrado por Botner, o atual momento de estabilidade é propício para a EAV alçar novos voos, mas, segundo ele, a continuidade desse caminho ascendente dependerá de esforços coletivos. “Para esse ‘Taj Mahal’ da cultura continuar existindo, todos nós teremos de cuidar dele. Somos nós, cidadãos, os maiores responsáveis pela EAV.”
*Fotos Pedro Agilson/Oca lage
Taj Mahal da cultura
Em 1859, o terreno que hoje sedia o Parque Lage foi comprado pelo empresário Antonio Martins Lage. Treze anos após a sua morte, em 1900, seus herdeiros venderam o espaço para o médico César de Sá Rabello. Apenas sete anos mais tarde, em 1920, o empresário Henrique Lage, neto de Antonio, readquiriu a propriedade. Homem culto e devoto das artes, Henrique decidiu construir para sua mulher, a cantora lírica italiana Gabriella Besanzoni, um suntuoso palacete, com projeto arquitetônico de Mario Vodrel. Até ser transferido para o poder público, nos anos 1950, como forma de saldar dívidas do empresário, o palacete foi palco de efervescentes saraus e reuniões culturais de toda natureza. O gesto apaixonado de Henrique justifica a analogia feita por Botner, que trata a edificação como um “Taj Mahal da cultura”, em referência ao mausoléu construído no século XVII, na Índia, pelo imperador mongol Shah Jahan para Aryumand Banu Begam, sua esposa predileta.
A partir de 1965, o palacete do Parque Lage passou a sediar o IBA – Instituto de Belas Artes. Criado em 1950, na ocasião da transferência do IBA para a nova sede, a Secretária de Cultura do Rio de Janeiro chegou a sondar a arquiteta Lina Bo Bardi para projetar espaços expositivos e, eventualmente, conduzir um processo de renovação do instituto. O episódio é recordado na conversa com Lisette Lagnado, a atual diretora da EAV. “Quando Lina saiu da Bahia, foi chamada para trabalhar no IBA e propôs a criação de pavilhões expositivos no Parque Lage. Nesse projeto, não realizado, é possível reconhecer a engenhosidade vernacular que caracteriza o trabalho dela. Lina também foi chamada para dirigir e repensar o IBA, o que também não deu certo. Dez anos depois, Gerchman transformou a EAV em uma verdadeira escola.”
Nascida em Kinshasa, no Zaire, em 1961, Lisette Lagnado veio com a família para o Brasil, em 1975. Em São Paulo, nos anos 1980, foi editora da revista Arte em São Paulo, criada pelo artista Luiz Paulo Baravelli. Em 1993, a mostra A Presença do Ready-Made, sua primeira experiência curatorial, venceu o prêmio APCA na categoria Melhor Exposição. Naquele mesmo ano, meses após a morte do artista cearense, Lisette deu início ao Projeto Leonilson, realizou a mostra Leonilson – São Tantas as Verdades e publicou, pela editora DBA, o livro de mesmo nome.
Entre 1999 e 2002, ela coordenou as pesquisas do portal Programa Hélio Oiticica. Desenvolvido pelo Instituto Itaú Cultural, o site disponibiliza para pesquisadores de todo o mundo cerca de 80% da produção teórica de Oiticica. O universo do artista carioca também inspirou, em 2006, outro projeto divisor na trajetória de Lisette, a curadoria geral da 27ª Bienal de São Paulo, cujo tema, Como Viver Junto, propôs diálogos com o Programa Ambiental de Oiticica. Em 2010, a convite do Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madri, na Espanha, ela assinou a curadoria da mostra Drifts and Derivations: Experiences, Journeys and Morphologies.
Lisette dirige agora uma estrutura capaz de acolher de 900 a 2 mil alunos por ano, em cursos variados. O principal, Práticas Artísticas Contemporâneas, é gratuito, tem duração de nove meses e grade diária de 10 horas. Além dele, há também atividades pagas, como cursos livres, de curta duração e práticas em ateliê. Implantado por Lisette, o Programa Curador Visitante promoverá atividades anuais com jovens curadores residentes no Rio de Janeiro. Ela explica que novidades como essas serão constantes, para possibilitar a retomada do caráter provocador e inventivo da EAV. “Por muito tempo, a EAV foi tratada como guichê público. A pessoa tinha R$ 200 mil para fazer uma exposição e a oferta era aceita sem nenhum critério. Desde que assumimos, todas as exposições passaram a ter curadoria – e continuarão dessa forma. Estamos trabalhando agora com cinco jovens curadores: a portuguesa Marta Mestre, a chilena Daniela Labra, o gaúcho, Bernardo de Souza, e os cariocas Bernardo Mosqueira e Luisa Duarte.” Primeira exposição resultante desse novo programa, a coletiva Encruzilhada foi curada por Mosqueira, reúne 80 trabalhos, 70 artistas e permanece em cartaz até 23 de março.
Em 2016, Lisette também pretende instituir um novo curso de estudos curatoriais, que deverá ganhar o nome História das Exposições. Doutora em Filosofia pela USP e ex-docente do curso de pós-graduação em Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina, Lisette considera a pesquisa contínua fundamental não só para os teóricos, mas também para os criadores: “Não trabalho com a ideia do artista como gênio. Ele pode até ter talento, mas tem de batalhar por repertório. Precisa saber o que os outros fizeram antes”, defende.
Um questionável clichê afirma que a vida começa aos 40 anos. Ele não serve para definir o passado da EAV – instável, talvez; incipiente, jamais –, mas parece iluminar seu futuro. O depoimento final de Lisette reverbera esse entusiasmo: “O convite de Márcio Botner para eu dirigir a escola veio num momento em que minha carreira de curadora havia chegado a um limite. Profissionalmente nunca estive tão feliz”, comemora.
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