Duas pinturas em lona de 1985, ambas produzidas para uma disciplina de Nelson Leirner na Faap, foram as primeiras obras de Iran do Espírito Santo adquiridas por uma instituição. Foi Aracy Amaral, quando de sua gestão à frente do Museu de Arte Contemporânea da USP, entre 1982 e 1985, a responsável pela compra, e os dois trabalhos, os desenhos de um sofá e uma vitrola, encontram-se agora em cartaz na mostra A Casa, no próprio MAC, até 31 de julho.
Nos trabalhos de 30 anos atrás, ao representar objetos cotidianos, o artista já apontava para uma poética que segue até hoje. “Vejo meus desenhos de adolescente e percebo que sempre trabalhei com esse tema, assim como com referência à arquitetura”, afirma Espírito Santo, em seu amplo ateliê, recentemente inaugurado, e que mais parece uma galeria de arte. “De repente eu inverto meu papel e passo a vender arte”, brinca, sem de fato parecer sequer estar pensando nessa possibilidade.
Apesar da pintura em lona das obras no MAC, a técnica da moda em sua geração nos anos 1980 – Leonilson e Leda Catunda, por exemplo, contemporâneos da Faap, também usavam esse material –, esses primeiros trabalhos do artista estão mais próximos da geração de seus professores, como Leirner e Regina Silveira, do que de seus colegas. “Eu realmente nunca me identifiquei com a celebração da pintura daquela época”, afirma. A simplicidade nas linhas, que busca quase o desenho ideal dos objetos retratados – o que será uma constante em sua carreira – , tem a ver com a identificação com a arte conceitual a partir de um dado de personalidade: “Tenho uma cabeça mais analítica”, define-se. Essa simplicidade tem ainda muito a ver também com o desenho, uma prática constante, que no ano passado ganhou uma publicação exclusiva dedicada a ele, Desenhos, editada pela Cobogó.
Seu desenho alcançou uma dimensão muralista, em 1997, quando ele ocupou nada menos que 110 metros quadrados de uma área de passagem do Museu de Arte Contemporânea de São Francisco, nos EUA, simulando paredes de tijolos, em três tons de cinza. “As pessoas passavam por lá e perguntavam onde estava o trabalho”, relembra. Duas versões dele foram vistas em 2007: uma na principal sessão da Bienal de Veneza, outra na retrospectiva do artista na Estação Pinacoteca, em São Paulo.
A “invisibilidade” desses trabalhos murais pode ocorrer por conta da proximidade de seu trabalho com o design, área que serviu como forma de subsistência em agências de propaganda até os anos 80 e, ainda como freelancer, nos anos 1990, fazendo ilustrações e projetos gráficos. “Eu lembro quando trabalhei, entre 1986 e 1988, em um escritório em Londres e tinha que ficar desenhando garrafas rosinhas, o que me irritava profundamente, e acho que isso me motivou a fazer uma série de desenhos onde as garrafas eram apenas pretas”, conta. Contudo, enquanto a propaganda sempre visa idealizar o objeto de consumo, para assim convencer o consumidor de sua necessidade, Espírito Santo realiza uma operação contrária, que é buscar a forma ideal, como se chegasse ao mundo das essências, das formas puras, portanto inalcançável, como defendia Platão.
Foi buscando, por exemplo, o “abajur essencial”, que ele criou sua primeira obra tridimensional, Abat-jour, a partir de um modelo simples do designer francês Philip Stark, convertendo todo seu volume em aço inoxidável, mantendo o formato do objeto. “Foi aí que eu cheguei a algo que buscava há muito tempo, que é quando a imagem forma uma dimensão arquitetônica e se relaciona com o corpo”, explica.
Desde então, copos, latas ou lâmpadas, entre outros objetos, ganham na obra do artista uma dignidade inédita, através do uso de materiais típicos da história da escultura clássica, especialmente o mármore. A série de caixas de sapato é um bom exemplo desse procedimento: realizada em paralelepípedos de mármore, uma saliência de apenas três milímetros transforma o elemento nobre na representação da embalagem. “É mágico”, admira-se Espírito Santo.
Essa valorização de objetos banais, muitos deles sempre em processo de descarte, ganhou o ápice em sua mostra mais recente na Fortes Vilaça, Fuso, na qual a maior sala da galeria foi ocupada por apenas quatro conjuntos de porcas e parafusos, só que 18 vezes maior que o modelo original e pesando mais de uma tonelada. Com o título Base Fixa, a obra cria “uma espécie de praça/chão de fábrica”, segundo o texto escrito pelo artista na primeira vez que ele torna pública a análise de sua própria obra.
Se sobre seu trabalho ele costuma ser discreto, sobre a situação do País, Iran do Espírito Santo é bastante eloquente. Ao contrário de muitos artistas que usam as redes para propagandear suas obras, para ele, esse é um espaço de militância política. Sua vida pessoal tampouco é exposta no Facebook. “Não é todo artista que sabe fazer arte política, eu faço o trabalho que tenho que fazer, mas é a opinião política que acho importante, assim como a maneira de se relacionar com o mundo da arte”, defende.
Por isso, ele conta que entrou no Facebook, em 2014, para se manifestar a favor de Dilma no segundo turno das eleições, o que acabou lhe rendendo o convite para participar do último ato da campanha, em São Paulo, no palco do Tuca, sentando-se ao lado do escritor Raduan Nassar. “Só não fiz foto ao lado dela porque sou tímido, mas senti uma profundidade em seu olhar que admiro”, conta.
Depois da reeleição, o artista deixou as redes sociais, mas voltou novamente agora em 2016 por conta do impeachment e para protestar contra o golpe. Em meados de junho, seus posts, mais de uma dezena por dia, compartilhavam críticas às posturas reacionárias do governo interino, como a promessa de fechamento da TV Brasil. “Por conta de tudo isso, me dá vontade de fazer uma arte política, mas eu não sei como. A postura que admiro é a de artistas como Jenny Holzer e Barbara Kruger”, explica.
Apesar de realmente não estar próximo da contundência de Kruger, é difícil não perceber que expor porcas e parafusos em uma galeria de arte seja um ato político. Afinal, enquanto se engendrava o golpe, de caráter claramente elitista, que visa brecar os avanços sociais da última década, criar um monumento a partir de objetos manipulados por trabalhadores braçais é dar visibilidade aos instrumentos de uma classe que não costuma estar aparente no circuito da arte.
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