No mítico prédio projetado pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy do Aterro do Flamengo, o 3o andar do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) acolhe, até 14 de abril, uma das mais gratas mostras deste primeiro semestre, a retrospectiva Márcia X. – Arquivo X. Falecida precocemente em 2005, aos 45 anos, em decorrência de um câncer, Márcia X. empreendeu carreira singular ao eleger performances, instalações, esculturas, videoarte e objetos como plataformas criativas de uma obra ousada, provocadora e bem-humorada, pautada por temas polêmicos como sexualidade e religião.
Para Beatriz Lemos, curadora da mostra, a produção de Márcia X. segue uma unidade de proposições, facilmente identificável em um recorte de décadas: “Nos anos 1980, ela fazia uma forte crítica ao sistema de arte. Márcia fez muitas performances com Alex Hamburger e Ricardo Basbaum e existia essa vertente crítica em tudo que eles faziam. Era o período da Geração 80, onde havia muitos artistas pintando e poucos tratando de questões políticas em relação à arte. Por uma escolha de linguagem e de discurso, eles se colocaram fora desse circuito legitimador”, defende Beatriz.
Márcia X. debutou, com seu nome de batismo, Márcia Pinheiro, em 1980, no 3o Salão Nacional de Belas Artes, ao realizar, em parceria com o grupo Cuidado Louças, a performance Cozinhar-te. Três anos mais tarde, ao lado da amiga Ana Cavalcanti, deixou atônitos transeuntes que cruzavam a esquina da rua Nilo Peçanha com a Avenida Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro. Do alto de um arranha-céu, elas lançaram enormes reproduções de notas de CR$ 5,00 (cinco cruzeiros), na performance intitulada Chuva de Dinheiro.
Em 1985, durante a Bienal do Livro, Márcia apresentou-se vestindo o que classificou de “não roupa”, uma capa preta sobreposta à outra transparente, deixando revelar sua nudez. A estilista carioca homônima manifestou preocupação de que sua imagem fosse associada à da artista e divulgou nota à imprensa defendendo que se dedicava a vestir e não a despir pessoas. Em resposta, Márcia passou a usar o nome Márcia X. Pinheiro e, pouco depois, adotou definitivamente a alcunha Márcia X. Em 1986, durante uma apresentação de John Cage e da pianista Jocy de Oliveira, na Sala Cecília Meireles, Márcia e Hamburger invadiram o palco durante a apresentação da peça Winter Music, de Cage – Márcia conduzia um pequeno velocípede, na intervenção intitulada Tricyclage – Música para Duas Bicicletas e Pianos.
A década seguinte foi marcada por um distanciamento das performances e uma intensa produção de objetos tão lúdicos quanto provocadores: “Nos anos 1990, a Márcia foca seus trabalhos nesse choque entre o universo infantil e o imaginário erótico dos adultos. Daí vem Kaminha Sutrinha e Fábrica Fallus, séries extensas que começaram em 1992 e renderam trabalhos até 2001. Esse estranhamento causado pelo cruzamento de objetos eróticos, como o vibrador, e brinquedos infantis leva a discussões sociais – a exposição tem, inclusive, a recomendação de também ser para menores de idade”. Entre os adultos que visitavam a mostra, um garotinho divertia-se com a obra Fiu Fiu, da série Fábrica Fallus, um enorme vibrador adornado por colares, com um dispositivo de detecção de presença que emula o assovio que dá nome a obra, a cada vez que alguém passa em frente ao objeto.
Além dos quase 60 itens e um sem-número de documentos, parte do ambiente de trabalho da artista foi reconstruído por Beatriz. Seu primeiro contato com a obra de Márcia em 2005, aconteceu logo após a morte da artista, quando foi convidada pela curadora Claudia Saldanha para ser assistente da retrospectiva Márcia X. Revista, realizada no Paço Imperial. Entre 2007 e 2009, Beatriz foi convidada pelo companheiro de Márcia, Ricardo Ventura, para organizar o acervo da artista. A imersão motivou a curadora a inscrever essa nova retrospectiva em um dos editais do MAM, com apoio da Funarte, que acolheu prontamente a ideia e foi além. O projeto ainda envolve a doação de todo o acervo da artista ao museu e a publicação de um livro dedicado à Márcia, que será lançado neste primeiro semestre de 2013. Beatriz torce para que Márcia X. tenha, enfim, sua importância devidamente mensurada: “Em 25 anos de produção, ela provou que era uma potência criativa. Um curto período de produção, mas muito intenso e pouco debatido. Mas agora ela deve motivar cada vez mais pesquisas e interesses”, aposta a curadora.
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