Tem algo de visceral uma escultura capaz de fazer o prefeito da cidade invadir armado um jornal. Irado com insinuações de que tentara censurar a Coluna de Cristal, de Francisco Brennand, Roberto Magalhães, então chefe do Executivo em Recife, entrou no Jornal do Commercio de revólver na cintura, pedindo explicações.
Era um cilindro fálico, de 32 m de altura, revestido de cerâmica e bronze. Esse mesmo trabalho foi alvo de vândalos no Réveillon de 2000. Nas palavras de Brennand, não tinha nada de mais. Fez uma escultura que representava “o elemento primordial, o começo da vida, o emblema da eternidade”.
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Toda a obra desse artista pernambucano parece roçar o limite entre o popular e o erudito. Desperta reações passionais, com um pé na erudição de um intelectual recluso e outro na observação da vida como ela é, em um Recife que exporta arte dita de verdade e a cerâmica e azulejaria que reveste casas e prédios de todo o Nordeste.
Brennand vive em um mundo só dele, uma antiga fábrica de porcelana, terreno de 10 mil m2, no bairro da Várzea, longe do centro da capital pernambucana. Lá estão suas mais de 2 mil esculturas espalhadas pela propriedade, um “templo”, nas palavras do artista, ou “cidadela messiânica” e “oásis criativo” para quem já visitou. Na mesma pegada do falo depredado, um ovo imenso fica pendurado no teto: “A origem de tudo”.
Mas na origem mesmo, a Oficina Brennand, como é chamado hoje seu ateliê, era uma fábrica, que chegou a ser um gigante industrial da região. Erguida pelo pai do artista, um irlandês que se radicou por aquelas bandas, a olaria dos Brennand fez fortuna em um contrato com a antiga SUDENE, nos anos 1970. Antes da fábrica, quatro engenhos de cana-de-açúcar funcionaram ali por quase 100 anos.
Não é um passado que possa ser descartado na leitura de seu trabalho. Brennand vem construindo um império artístico alicerçado em uma herança de engenho, espremendo bagaços para extrair lucro, e de fábrica, a usina ceramista para adornar palácios e repartições. Mesmo sua escultura, todo o barro, obedece a uma lógica de produção em massa que beira o popular, extrapola o universo diminuto do ateliê, para entrar com força na vida.
Sem qualquer demérito, nem medo dos rótulos popular e erudito, Brennand sabe onde pisa. Inventou uma mitologia própria, de seres mutantes que podem ser qualquer coisa. São pássaros, personagens históricos reais e fictícios, falos e ovos. Se a repetição é uma marca da obra que aproxima tudo do artesanato, a receita e fatura manual, o fato de não usar moldes e nunca repetir uma escultura, torna cada peça única, fincando raízes na esfera da criação, ou talvez, da genialidade.
Despachou logo cedo o preconceito pelos materiais que decidiu usar. Alçou à cerâmica, aquela dos vasos e cuias banidas dos círculos cultos, à condição de material digno. Nesse ponto, joga luz sobre uma tradição ofuscada na História da Arte, dos vanguardistas que também adentraram sem medo nesse terreno.
Quando foi estudar pintura em Paris, ainda jovem, fez a descoberta que casaria para sempre esses dois pontos de seu trabalho, uma junção de matéria popular a conteúdo erudito. “Tinha soberano desprezo pela cerâmica”, lembra Brennand. “Mas, em Paris, vi uma exposição de cerâmica de Picasso e percebi como eu era provinciano. Todos os grandes nomes da Escola de Paris – Miró, Picasso, Léger, Chagall – incursionaram por ela.”
Além da Escola de Paris, todo um repertório erudito serve de lastro para a obra de Brennand. São constantes as referências a escritores, como Joseph Conrad e Somerset Maugham, aos pintores Van Gogh, Gauguin, Cézanne, Léger, ao arquiteto-artesão Gaudí. “Tenho certeza de que o fantasma de Gaudí me acompanha”, disse Brennand em entrevista. “Assim como o fantasma de meu pai me acompanha.” Também lembra como ficou surpreso, em visita ao ateliê de Léger, com o fato de o artista dar preços a suas telas pelo tamanho, quanto maior fosse mais cara custava. Parece levar ao pé da letra a frase de Gauguin, que dizia: “Um quilo de verde é mais verde do que meio quilo”.
No fundo, Brennand traduz esse universo para uma lógica particular, em um meio termo feliz entre popular e erudito. Quando esteve na Bienal de São Paulo, foi parar na ala de artistas primitivos, mas também foi o único capaz de arrancar elogios de André Malraux, observador das vanguardas, em visita à cidade. Também foi com seus falos, de alta carga primitiva, que representou o país na Bienal de Veneza, em 1990.
“Prefiro me defrontar com uma mitologia própria, feita com uma sem-cerimônia quase insultuosa, citações de figuras femininas retiradas da história que, na verdade, só me atraíram por seu infortúnio”, resumiu Brennand certa vez. É uma atitude que ajuda a explicar seu gosto pessoal por Almeida Júnior e desprezo por Portinari, José Pancetti. “Querem que eu fale da seca, mas a seca, os furacões são respostas da natureza ao mal intrínseco do homem. Interessa-me o indivíduo, não acredito na coletividade sem face, moldável, caótica.”
E de tão particular que é esse universo, Brennand chegou a ser visto por alguns críticos como o mais erudito dos artistas brasileiros. Mas isso sem rechaçar seu estranho e potente apelo popular. “Se Giotto fosse vivo na época de São Francisco de Assis, a quem retratou, São Francisco não lhe daria a mínima”, brinca. “Talvez preferisse um primitivozinho, um borra-botas qualquer da época.”
Silas Martí é jornalista de arte da Folha de S.Paulo e colaborador de revistas de Cultura
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