Alguns dos museus mais frequentados da cidade, um pavilhão que recebe os principais eventos anuais de arte, um auditório com intensa programação de espetáculos, jardins lotados de visitantes passeando e fazendo esportes, um viveiro de plantas, lagos, monumentos e um planetário, entre outros. O Parque Ibirapuera, com quase 160 hectares, é um ícone de São Paulo tanto pela vitalidade de seus espaços e instituições quanto por seu projeto arquitetônico modernista e inovador, concebido por Oscar Niemeyer (1907-2012) a partir dos anos 1950. Coroando o reconhecimento que já era público – e internacional –, o conjunto de obras do parque acaba de ser tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) neste mês de maio. A arquitetura que simbolizou o sonho de um Brasil moderno, ao menos ali no Ibirapuera, se concretizou com sucesso.
Em uma cidade distante, no Oriente Médio, outra grande obra de Niemeyer não teve a mesma sorte. A Feira Internacional Rashid Karami, projetada pelo arquiteto brasileiro nos anos 1960 para ocupar um espaço de 100 hectares na cidade de Trípoli, no norte do Líbano, chegou a ser quase inteiramente erguida – tendo inclusive alguns de seus setores inaugurados –, mas teve a construção bruscamente interrompida. O megacomplexo, inicialmente chamado apenas de Feira Internacional do Líbano, deveria abrigar jardins, museus, pavilhões, espaços administrativos, sala de leitura, teatros, shows, um hotel e um enorme pórtico, entre outros espaços – guardadas as especificidades, um local bastante semelhante ao Parque Ibirapuera. Em 1975, no entanto, com a eclosão da Guerra Civil do Líbano, a obra foi totalmente abandonada, e o espaço se tornou uma espécie de fantasma na cidade de Trípoli (quando não um depósito de armas ou abrigo para milícias). A arquitetura que simbolizou o sonho de um Líbano moderno, ao menos ali, não teve sucesso.
Foi justamente o interesse por esta obra pouco conhecida de Niemeyer e suas semelhanças com o parque paulistano que incentivou a artista kuwaitiana/porto riquenha Alia Farid a realizar o trabalho que apresentará na 32ª edição da Bienal Internacional de São Paulo, que acontece entre 10 de setembro e 11 de dezembro. A pesquisa de Farid – que desenvolve há anos trabalhos na intersecção entre artes visuais, arquitetura e antropologia urbana – resultará em um vídeo, filmado na Feira Rashid Karami, que busca apresentar um retrato deste projeto pouco celebrado de Niemeyer e seu significado simbólico para os libaneses. “Trípoli é uma cidade mergulhada em história. Sua arquitetura vai do mameluco ao moderno. E para muitos habitantes, a feira representa uma esquisitice ou anormalidade na paisagem”, conta Farid à ARTE!Brasileiros. “A ideia, no vídeo, é que o público seja guiado pelo espaço por uma personagem que, assim como a arquitetura, nunca dá as caras totalmente. Ela pertence ao lugar, o representa, e se move sem esforço pelo local. Aparece, por exemplo, no topo de um espaço similar à OCA, toma sol em uma pedra perto de uma piscina vazia, em uma réplica dilapida da Casa das Canoas e assim por diante.”
Outros personagens do filme, que transita entre documentário e ficção, são os funcionários que mantém o espaço e os frequentadores, que usam as áreas ao ar livre principalmente para fazer exercícios. O trabalho, segundo a artista, investiga a coabitação destes agentes neste espaço tão “particular e peculiar”. Ao mostrar o vídeo no pavilhão da Bienal, justamente dentro do Parque Ibirapuera, Farid pretende não apenas apresentar ao público brasileiro uma obra “esquecida” de Niemeyer, mas também levantar um debate sobre o significado da arquitetura e do uso dos espaços. Se no Ibirapuera a intensa utilização pública se dá em decorrência não só da arquitetura do local, mas de sua boa preservação e vasta programação cultural das instituições (com investimento de recursos públicos e privados), em Trípoli um outro uso, mais tímido e limitado, não deixa de ser observado na feira.
“O espaço é, de algum modo, popular entre os habitantes da região. Há dois horários de pico: de manhã, pessoas mais velhas fazem seus exercícios; e, pelo fim da tarde, pais e seus filhos pequenos ou adolescentes que saem das escolas passeiam por lá. O curioso é que, mesmo com as obras inacabadas, as pessoas ainda façam o máximo de uso possível do local”, diz Farid. Administrado por uma organização privada ligada ao Ministério de Economia e Comércio, o complexo, conhecido também como “Maarad”, passou a receber esporadicamente, principalmente nos anos 2000 – após o fim dos confrontos na cidade –, eventos como feiras e shows. Algo que, segundo a guia turística local Mira Minkara, não chega a trazer uma presença constante e numerosa de visitantes, já que no dia-a-dia até a entrada no espaço é controlada.
O peso da história
Se há uso, não se trata, obviamente, daquele imaginado por Niemeyer quando concebeu a feira, em 1962. Em texto escrito à época, no qual se refere também a outros projetos habitacionais que começavam a ser pensados para a cidade, o arquiteto brasileiro escreveu: “Neste conjunto urbano, a Feira Internacional do Líbano é o elemento principal e constitui para Trípoli um centro de atrações – de interesse cultural, artístico e recreativo – da maior importância com seus teatros, museus, locais de esportes e diversões”. Em outro texto, em que explicava detalhes do projeto – constituído por uma cobertura gigante de 750m x 70m sob a qual se distribuiriam os pavilhões e por um vasto espaço central com os outros edifícios – Niemeyer foi mais filosófico em sua conclusão: “A escolha desses elementos teve como objetivo levar aos visitantes os temas que apaixonam o mundo contemporâneo: as experiências espaciais cheias de beleza e mistério, a evolução da habitação e suas perspectivas, o teatro, a música, o cinema etc., e, ainda, o pavilhão do Líbano, mostrando esse país, sua tradição e progresso”.
A guerra iniciada em 1975, que envolveu facções nacionais cristãs maronitas e muçulmanas, além dos vários conflitos que se seguiram no país e na região nas décadas seguintes envolvendo israelenses, sírios e palestinos, arruinaram os sonhos de Niemeyer e, mais que os dele, de milhões de habitantes libaneses. Em oposição à aspiração por cultura, arte e conhecimento, o megacomplexo foi muitas vezes utilizado por milícias e o local que abrigaria o chamado Museu do Espaço, por exemplo, virou depósito de armas do Exército da Síria. “‘Com todos os problemas que existem, você não pode esperar que a feira seja uma prioridade’, dizem várias das pessoas com quem eu interagi por lá”, conta Farid. Vale lembrar que, mesmo sem viver uma guerra, o Líbano segue em situação instável, por conta das tensões em países vizinhos e das ações constantes de grupos militares como o Estado Islâmico. Sobre a feira, se sua história peculiar e “obscura” por vezes afasta olhares, por outras traz grande curiosidade e atenção.
Atenção dada, por exemplo, por Minkara, que conhece o espaço desde a adolescência e hoje promove visitas guiadas ao local. Em evento criado no Facebook para organizar os passeios, o texto de descrição pergunta: “Você sabia que o icônico arquiteto moderno brasileiro Oscar Niemeyer, que projetou Brasília e sede das Nações Unidas em NY, projetou o que os tripolitanos chamam de Maarad? Então esteja pronto para andar pela vanguardista Feira Internacional desenhada nos anos 1960 pelo renomado arquiteto na segunda maior cidade do Líbano!”. Minkara conta que organiza de uma a duas visitas mensais, e recebe desde visitantes libaneses até arquitetos e diplomatas estrangeiros. “O local é um espaço suspenso, surreal, feito de concreto, cercado por grama, árvores e flores. As fascinantes formas vanguardistas da obra de Niemeyer abraçam uma ampla variedade de funções e às vezes até mesmo leva-nos para o reino do mistério. O sentimento de descoberta de um monumento moderno abandonado ainda me intriga em cada visita”, diz ela.
Imprevisibilidade
Mistério e intriga, termos usados pela guia, se relacionam diretamente ao conceito da 32ª edição da Bienal Internacional de São Paulo, intitulada Incerteza Viva, que com curadoria do alemão Jochen Volz se propõe a tratar, através da poética da arte, de diversas questões contemporâneas relacionadas à imprevisibilidade e as incertezas do mundo e da vida. Com um forte tom político – mas não didático ou panfletário –, a Bienal pretende discutir temas ligados ao meio ambiente, à perda de diversidade biológica e cultural, à distribuição de terras e recursos naturais, aos modelos de trabalho e educação, aos conflitos políticos e sociais, entre outros assuntos polêmicos. Neste sentido, o trabalho de Alia Farid parece se conectar diretamente ao universo proposto por Volz, tanto no que se refere à utilização de espaços urbanos quanto à incerteza e insegurança vivida em países em conflito.
“Do jeito que a vida caminha no Líbano, em sua precária posição entre o conflito Israel-Palestina e o conflito sírio, o trabalho me parece muito alinhado ao tema da Bienal deste ano. E acho que este retrato de pessoas que habitam um recinto desolado e continuam suas rotinas de exercício é um bom exemplo de como a vida diária nem sempre é impedida por governos orientados por seus próprios interesses. É a realidade da maioria das pessoas vivendo no mundo árabe”, diz Farid. Ao relacionar Brasil e Líbano, ela dialoga também com outro conceito proposto pela curadoria da Bienal, sobre a conexão entre o que ocorre nos mais variados cantos do globo. “Hoje nós temos uma noção de que algo que acontece em outra parte do mundo tem um reflexo aqui. Seja pela economia, seja pela ecologia, pelo clima, pela poluição, pelos fluxos de pessoas, tudo obviamente é conectado”, explica Volz. Neste sentido, o Brasil foi um dos grandes destinos de imigrantes libaneses ao longo de muitos séculos, inclusive no período da guerra civil. Tanto que, no fim da conversa por telefone com à ARTE!Brasileiros, Minkara fez um pedido: “Quando publicar a matéria, por favor me manda o link. Quero enviar o texto para os meus parentes que moram no Brasil”.
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