No final dos anos 1950, a passagem da arte moderna para a arte contemporânea foi marcada pela recusa em manter a separação entre o que era arte e o que era vida. Se até então a vida só aparecia como representação em quadros e esculturas expostos em espaços homogêneos, ideais e sem interferências externas, a partir daquele momento a produção artística começava a se interessar em estabelecer diálogos e tensões com o mundo do lado de fora dos cubos brancos das galerias e salas de museus, fragmentado, real e contaminado. O termo “Arte e Vida” se tornou obrigatório na leitura desse momento de passagem e, no Brasil, foi apropriado e redimensionado de maneira fundamental pelas experiências do final dos anos 1950 e início dos anos 1960, promovidaspelo Neoconcretismo, e por artistas como Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica, com importantes desdobramentos durante os anos 1970.
Tomando esse momento como ponto de partida, a exposição artevida, com curadoria de Adriano Pedrosa e Rodrigo Moura, e organização da Secretaria de Estado de Cultura, se apresenta como uma possibilidade de pensar a produção artística entre o fim dos anos 1950 e o início dos anos 1980, a partir desses marcos brasileiros, deixando de lado leituras já estabelecidas de referências externas, como o Minimalismo e a Arte Conceitual. “A artevida é uma exposição de hipóteses, não de teses, e nesse sentido busca outros caminhos, percursos, leituras para a arte contemporânea recente, tomando o Brasil, algumas de nossas referências, como filtros para ler certos recortes da produção entre o final dos anos 1950 e o início dos 1980. Não é uma exposição de genealogias e relações de causalidade, como pretende a história da arte tradicional. Aqui, tentamos fazer conexões transversais, outras histórias, que em português inclusive pode se referir a fato ou ficção. São novas histórias que podem também ser referências para novas gerações de artistas”, explica Adriano Pedrosa.
Cerca de 110 artistas, oriundos de 23 países do Leste Europeu, da África, Ásia, do Oriente Médio e das Américas, incluindo o Brasil, com ênfase em artistas do sexo feminino, apresentam quase 300 obras, entre pinturas, esculturas, instalações, fotografias, desenhos e vídeos, em alguns dos espaços culturais mais importantes do Rio de Janeiro.
Na Casa França-Brasil está uma das duas principais seções da mostra, artevida (corpo), que reúne obras que já não se apresentam mais como objetos fechados, destinados a uma contemplação passiva do espectador. As obras são como corpos vivos, mutáveis, que incorporam de maneira ativa outros corpos, como o do artista e do espectador.
Os Bichos, de Lygia Clark – objetos articuláveis, animados a partir da manipulação do público –, são uma das referências para esse segmento. Aqui, estão reunidas obras que podem ser pensadas a partir da ideia de módulo, participação e articulação, como os dutos de ar-condicionado que se recombinam em diferentes formas, da alemã Charlotte Posenenske; os poemas de peças empilhadas da libanesa Saloua Raouda Choucair; as linhas desconstruídas do polonês Edward Krasiński; e a sequência de autorretratos da húngara Dóra Maurer, em que as imagens são fragmentadas e seus pedaços rearranjados como em um mosaico.
Vem também de Lygia Clark outra referência para o segmento artevida (corpo): a ideia de linha orgânica – uma linha que não é mais desenhada ou pintada sobre uma superfície bidimensional, para criar a ilusão de paisagens, retratos e qualquer outra imagem; e sim uma linha de verdade, que é resultado do encontro de dois corpos, sendo o limite entre um e outro. As obras reunidas na mostra a partir desse conceito deixam de lado a rigidez da grade geométrica, abstrata, de horizontais e verticais ortogonais, em busca de uma linha que se apresenta de maneira mais orgânica, como fios de uma costura. Como em Sistemas Cromaticos Primarios y Secundarios, em que o argentino Alejandro Puente toma como base os guipos –sistema inca de contabilidade, com longos fios e nós. Essa é uma ideia de linha que se apresenta também como “a linha da vida”, como apontam os curadores. É o caso de trabalhos da brasileira Ana Maria Maiolino, como em Por um fio (1978), onde a artista, sua filha e sua mãe, sentadas lados a lado, estão ligadas por um fio. É o caso também da série fotográfica Deposition (1964) que mostra o croata Josip Vaništa, levando uma linha pintada em uma superfície “para passear” pela neve.
“Artevida toma a arte brasileira como matriz, mas também remete a uma outra postura do artista, que é experimental, que não é comprometido com acertar. Uma arte emancipada, vital, que se reinventa, se coloca em prova”, aponta Rodrigo Moura, ressaltando que o corpo também ganha nessa exposição uma leitura a partir do viés político.
No Museu de Arte Moderna do Riode Janeiro o segundo grande segmento, artevida (política), reúne obras feitas na resistência a regimes autoritários e segregacionistas, em torno de temas como vultos feminismos, banners, mapas e símbolos nacionais, guerra e violência, racismo, votos e eleições, manifestações, trabalho, censura e prisão.
“A grande matriz para esse segmento é a arte engajada brasileira dos anos 1960 e 1970, feita sob o regime da ditadura militar, que cria novas bases para responder a uma pressão da realidade, ao propor uma continuidade ou sobreposição entre espaço político e espaço da arte”, completa Moura. Fazem parte desse segmento artistas como os brasileiros Antonio Manuel, Carlos Zilio, Lygia Pape e Julio Plaza, as chilenas Lotty Rosenfeld e Cecilia Vicuña, os norte-americanos Lynda Benglis e John Dugger, e o croata Goran Trbuljak.
Na Biblioteca Parque Estadual completam o projeto artevida outros dois segmentos. Em artevida (arquivo), com cocuradoria de Cristiana Tejo, estão reunidos cerca de 400 itens do arquivo de Paulo Bruscky, artista baseado em Recife, expostos em vitrines temáticas; além do Arquivo Graciela Carnevale, artista membro do Grupo de Arte de Vanguardia de Rosário (Argentina).
Na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em artevida (parque), estão obras da artista maceioense Martha Araújo,da japonesa Tsuruko Yamazaki do artista do Benin, Georges Adeagbo.
Uma conferência, aberta ao público, que acontecerá em 5 e 6 de setembro, na Biblioteca Parque Estadual, com a participação de curadores independentes e ligados a instituições internacionais de arte, pretende agregar desdobramentos para a discussão levantada pela exposição. “Penso que seja nosso dever desenvolver essas novas conexões, a partir das margens, pois se nós não o fizermos, certamente não serão os euro-americanos que o farão. Há uma dimensão política nisso tudo. Por que o Brasil só pode olhar para o que é brasileiro com nossas referências? Eu posso olhar para o resto do mundo a partir dos meus filtros. Europeus e americanos fazem isso o tempo inteiro; o nome disso é eurocentrismo. Eles vêm para cá e leem a nossa cultura com as referências deles. Por que não podemos fazer isso? Esse é o desafio. O mundo é muito maior que a Europa e os Estados Unidos”, resume Adriano Pedrosa.
Casa França-Brasil
De 28 de junho até 21 de setembro
Rua Visconde de Itaboraí 78 – Centro – Rio de Janeiro/RJ
21 2332-5120 – www.fcfb.rj.gov.br
Biblioteca Parque Estadual
Av. Presidente Vargas 1261 – Centro
21 2332-7225 – www.bibliotecasparque.org.br
Escola de Artes Visuais do Parque Lage
De 19 de julho até 21 de setembro
Rua Jardim Botânico 414 – Jardim Botânico – Rio de Janeiro/RJ
21 3257-1800 – www.eavparquelage.rj.gov.br
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
Av. Infante Dom Henrique, 85 – Parque do Flamengo
21 2240-4944 – www.mamrio.com.br
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