O debate sobre a possibilidade de o Estado brasileiro declarar obras de arte “bens de interesse público” – algo semelhante ao tombamento na área do patrimônio histórico – fez barulho nos últimos meses, exaltou ânimos e dividiu opiniões no mundo das artes. A tensão começou após a publicação, em outubro passado, de um decreto presidencial (nº 8.124) regulamentando a criação do Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM (autarquia vinculada ao Ministério da Cultura em atuação desde 2009) e o Estatuto de Museus, que define uma série de regras e diretrizes para uma política nacional no setor. A partir daí, grupos de galeristas e colecionadores acusaram o governo de excessiva intervenção no mercado, avaliaram o decreto como inconstitucional e nebuloso e chegaram a questionar a própria necessidade de existência do IBRAM. Enquanto voz do governo, o presidente do Instituto Angelo Oswaldo, respondeu – disposto a dialogar, mas por vezes falando grosso –, e novas questões foram colocadas em pauta. Falou-se tanto em uma politização do debate por parte de setores antigoverno quanto no fato de proprietários de obras estarem, na verdade, com medo de pagar os impostos devidos. Agora, se com o decorrer dos meses a poeira começou a baixar, o conflito parece ainda longe de uma solução.
O grande motivo da discórdia surgiu de uma passagem específica do decreto presidencial, que dá ao Estado o poder de definir obras de arte – inclusive aquelas de posse privada – como bens de interesse público, a partir da avaliação do Conselho Consultivo do Patrimônio Museológico. Na verdade, a Lei é um desenvolvimento e aprofundamento de algo que já era possibilitado, mas realizado em raros casos, nas instâncias do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN o acervo do MASP, por exemplo, é tombado desde 1969. As novas regras expandem as possibilidades e de que obras sejam declaradas “de interesse público”. Isso significa que os bens escolhidos devem ser registrados e, a partir de então, precisarão de autorização do Estado para poderem ser comercializadas, restauradas ou tiradas do País. Além disso, o Estado pode recorrer ao direito de preferência para a compra de tais peças em leilões. Na França, por exemplo, o Estado tem direito de preferência para aquisição de obras consideradas de interesse nacional, e também oferece vantagens fiscais a compradores particulares que mantêm tais obras em território nacional. Na Inglaterra, os bens culturais necessitam de autorização individual para exportação, caso ultrapassem certos limites de idade ou valor, indicados por um órgão do Arts Council. “Todos os países têm essas regras, de modos diferentes”, diz o curador Fábio Magalhães, que participará do conselho criado pelo IBRAM. “No Japão, eles fazem uma lista, que inclui, por exemplo, quimonos, gravuras e cerâmicas, que eles classificam como patrimônio local, nacional, etc. Entre as peças, existem aquelas que não podem sair do país”, completa. Vale lembrar que no Brasil, em 2007, a venda da coleção de arte construtiva brasileira do paulista Adolpho Leirner ao Museum of Fine Arts de Houston (EUA) gerou grandes protestos e foi considerada por muitos um “desastre” para o País.
Seja como for, a reação à nova lei no Brasil veio com força por parte do chamado “mercado de arte” – galeristas, colecionadores e alguns artistas –, ainda no fim de 2013. Segundo Eliana Finkelstein, ex-presidente da Associação Brasileira de Arte Contemporânea (que reúne 43 galerias) e sócia da Galeria Vermelho, as leis do tipo em outros países são claras, e o decreto no Brasil peca pela falta de precisão e pela abrangência excessiva. “A arte já lida com tanta subjetividade que, quando vai para o papel, precisa de certa clareza para o artista, o diretor de museu.” Ela diz também que, após a publicação do decreto, o mercado retraiu e que, com medo de uma possível expropriação de obras, alguns colecionadores começaram a se recusar a emprestá-las para serem exibidas em mostras – para que não entrassem na mira do IBRAM. Um medo infundado, diz Oswaldo: “Não temos o interesse de desapropriar, expropriar, nem imobilizar uma obra. Parece que galeristas e marchands estão dando um tiro no pé, porque estão aterrorizando o mercado”. Além disso, segundo ele, dizer que o mercado retraiu é apenas um disparate.
Mas para muitos galeristas e colecionadores, apoiados por advogados e especialistas em direito, a coisa não é tão simples, já que o texto do decreto dá margem a outras interpretações. Em debate realizado pela revista Select, no dia 17 de fevereiro, o professor de direito Roberto Dias da Silva argumentou que há diferenças entre o que já estava no Estatuto dos Museus (lei escrita em 2009) e o que diz o decreto. Este, segundo ele, estaria indo além da lei ao estabelecer novas regras, e isso o tornaria inconstitucional – por definição, um decreto pode apenas determinar o cumprimento da resolução, não alterá-la. Além disso, a passagem que diz que o governo pode fazer inspeção de obras em qualquer lugar, por exemplo, estaria em desacordo com a garantia de inviolabilidade de domicílio, o que resultaria em falta de segurança jurídica. Questionado sobre esse ponto, Oswaldo responde: “Imagine se um técnico do IBRAM ou do MinC vai invadir alguma casa! O IPHAN faz tombamentos desde 1938 e nunca invadiu a casa de ninguém”.
Os que se opõem ao decreto – e a maioria deles diz acreditar na boa vontade do IBRAM –, afirmam, no entanto, que não se pode depender da competência de uma ou outra administração quando se fala em leis, e que tudo deve estar muito claro e especificado no papel. O colecionador João Carlos de Figueiredo Ferraz é um deles: “O mercado é o mecenas de hoje em dia. E o que é preciso para esse mercado ser ativo, se fortalecer? Duas coisas: regras claras e segurança para o investidor. Sem isso ninguém compra, ninguém investe”. O fato é que, com uma lei que já foi votada pelo Congresso Nacional e sancionada pela Presidência da República, o governo não deve recuar da decisão, e a Lei, a princípio, não será alterada.
Assim, as maiores expectativas recaem agora sobre o conselho consultivo, que será constituído por oito representantes de entidades culturais ligados ao governo e 13 personalidades do campo da museologia – entre eles o secretário de Cultura do Estado, Marcelo Mattos Araújo, o colecionador José Olympio, o jurista Modesto Carvalhosa e Fábio Magalhães. Para o “tombamento”, uma obra passará primeiro pela avaliação de técnicos do IBRAM, depois do conselho e, por fim, pela homologação do ministro da Cultura. “Parece a mim bastante razoável”, disse Oswaldo no debate, seguido pelo questionamento de Figueiredo Ferraz: “Se isso tudo que você está dizendo estivesse escrito, nessas palavras, acho que não teria nenhum tipo de problema. O temor vem porque o decreto é mal redigido”.
Outra questão surgida nos debates – mas que, pela delicadeza do tema, não parece ter sido aprofundada – se refere às irregularidades e a um lado mais “obscuro” do mundo da arte. “Tem muita gente que não está com medo da declaração de interesse público, mas com medo da declaração de renda”, dispara Oswaldo. Ele se refere a colecionadores que não pagam os impostos devidos e às obras que são vendidas em transações ilícitas – e que se fossem registradas estariam também na mira da Receita. “O pessoal tem medo porque uma parte das coleções – claro que não todas – foi comprada de coisas roubadas, ou serviu para corrupção, lavagem de dinheiro. E vende-se muito sem nota fiscal”, afirma o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Lucio Gomes Machado.
Gomes Machado é um dos que ataca com mais força o funcionamento do mercado de arte e defende o Estatuto de Museus e o trabalho do IBRAM – que, para alguns, não tinha nem necessidade de existir, já que estaria se sobrepondo a funções do IPHAN. “Tudo que estão falando do IBRAM agora, nas décadas de 1940 a 1960 falavam do IPHAN. É um repeteco”, dizendo que as coisas devem se acalmar com o tempo e que a existência de uma autarquia específica para o setor de museus (são 3.300 ao todo no Brasil) é importante. Por fim, os dois – ou mais – lados do debate não chegaram, até o momento, a um consenso, e assim, parece, ficará o quadro por enquanto. Se o barulho inicial não é mais o mesmo, até pelo diálogo aberto estabelecido entre as partes, a insegurança continua. “As pessoas seguem preocupadas, porque o tempo vai passando e não há um parecer”, diz Finkelstein. Já para Oswaldo, é a prática com transparência do conselho que vai estabelecer um caminho e clarear as dúvidas. “Uma lei para ser alterada tem de ir para o Congresso Nacional. E é um decreto da presidenta, eu não posso questioná-lo por causa de receios, temores e suposições de algumas poucas pessoas. Quando o conselho começar a funcionar, as pessoas verão o que é. Ele tem um regimento interno de funcionamento, e estaremos sempre comprometidos com uma ação transparente. Não tem nada a ver com violar os direitos dos cidadãos. Pelo contrário, estamos protegendo o patrimônio de todos”, concluiu o presidente do IBRAM.
DECRETO LEI DÁ O QUE FALAR |
“Uma política pública não pode ser criada sem discussão com as partes envolvidas” |
Por Fabio Cypriano Poucas ações governamentais repercutiram tanto no campo da cultura como a publicação do decreto no 8.124, que regulamentou o Estatuto dos Museus e o Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM. Nos últimos dez anos, durante os governos Lula e Dilma, os museus públicos deixaram de ser um apêndice do IPHAN e ganharam autonomia, verbas e políticas inéditas para o desenvolvimento desse campo. Havia, essa era a impressão, uma sincronia entre o crescimento do mercado de arte e da visibilidade da arte brasileira tanto interna quanto externamente com esse apoio sistemático aos museus, junto à criação de novos órgãos, como o IBRAM. Em resumo, todo o sistema das artes visuais crescia e o governo federal não só dava nova sustentação legal a ele, como patrocinava a presença de galerias brasileiras em feiras estrangeiras, além de outros programas de incentivo à venda, o que ainda o faz, via Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos). O decreto 8.124 fez uma cisão nesse crescimento, ao criar uma nova figura jurídica, a “declaração de interesse público” para obras de arte, o que a iniciativa privada enxergou como uma espécie de confisco. Por um lado, a reação histérica tem motivação compreensível, já que uma política pública não pode ser criada sem a necessária discussão com as partes envolvidas. Há um óbvio erro estratégico de não preparar o circuito para as novidades. Por outro, o decreto pode ser visto como inócuo e redundante, já que a intenção de proteção de uma obra de arte já está contemplada pela possibilidade de tombamento. O MASP, por exemplo, tem seu acervo tombado, o que proíbe a sua venda ou o seu desmembramento. Soma-se aos erros do governo uma má vontade antipetista beligerante de alguns colecionadores com repercussão na imprensa. Eles já se enxergam na Venezuela e estão mandando suas obras para o exterior ou deixando de emprestá-las para exposições institucionais, um claro sinal de pressão. A questão é que, até agora, não há no governo federal nenhum gesto expropriatório e a “declaração de interesse público” só deve ocorrer ainda após muito debate e a instalação de um Conselho Consultivo do Patrimônio Museológico. O anúncio dos representantes paulistas nesse grupo, o secretário de Cultura do Estado Marcelo Mattos Araújo, o colecionador José Olympio, o curador Fábio Magalhães e o jurista Modesto Carvalhosa, aponta que há uma intenção do governo em baixar o tom do debate. O problema é se isso será possível, depois de um início com tantos passos em falso. |
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