A Bienal de Sharjah é realizada desde 1993 no mais tradicional dos Emirados Árabes Unidos. Em 2003, a filha do emir de Sharjah, Sheikha Hoor Al Qasimi, ao retornar de seus estudos na Europa, assumiu o comando do evento cultural mais importante do Oriente Médio. A Fundação de Arte de Sharjah (Sharjah Art Foundatiom-SAF) foi criada em 2009 para levar adiante a missão da Bienal de estabelecer pontes entre artistas, instituições e organizações em níveis local, regional e internacional. Hoor Al Qasimi é artista e curadora e, desde que dirige a Bienal de Sharjah, tem circulado nos eventos artísticos mais importantes do mundo, que são visitas obrigatórias para diretores dos principais museus, curadores de prestígio e os mais célebres artistas plásticos.
Para a 12a edição, neste ano de 2015, a Bienal é exibida por diferentes lugares do emirado, convidando o espectador a conhecer Sharjah. A curadora Eungie Joo, que esteve à frente do New Museum of Contemporary Art, em Nova York, e foi diretora artística e cultural do Instituto Inhotim, batizou a mostra de O Passado, o Presente, o Possível, ressaltando que o título não reflete exatamente um tema que organize a exposição, mas propõe pensar no tempo como linha de contato entre as obras, concentra-se no presente e às vezes nos remete ao passado para refletir sobre a atualidade.
Eungie organizou um abrangente programa pré-bienal através da March Meeting 2014, série de fóruns anuais de estudo e diálogos que a fundação propôs para explorar de forma dinâmica a produção cultural no mundo árabe. Os artistas foram convidados pela curadora para conhecer o terreno onde seria realizada a mostra, visitar os recantos de Sharjah para, em suas obras, evidenciar o presente.
Sob um clima desértico, a Bienal apresenta obras como a da brasileira Cinthia Marcelle, que com um grau sublime de poética realizou At the Risk of the Real em uma antiga casa na área histórica de Sharjah. Marcelle construiu uma instalação de 3 m de altura, formada por postes e traves de madeira que sustentam um sistema de peneiras. A artista pede aos trabalhadores locais para realizarem tarefas rotineiras ao mover areia sobre a estrutura. Quando adentramos a obra e queremos alçar o olhar para ver as peneiras no alto, a areia que escorre nos impede de abrir os olhos. Marcelle expõe de forma muito sutil a problemática das más condições de trabalho nos Emirados Árabes e a questão da prioridade do avanço econômico sobre todas as coisas, utilizando um elemento local e cotidiano, a areia.
Nos diferentes prédios que sediam a Bienal – museus, fábricas, etc. –, podemos encontrar uma seleção de obras da pintora turca (e princesa) Fahrelnissa Zeid (1901-1991). Com ela, Sharjah realiza uma retrospectiva do desenvolvimento da arte da região a partir da trajetória de uma de suas representantes mais importantes. Imensas abstrações conversam com esculturas de resina transluzentes e ossos, e com os retratos familiares que a artista realizou no final de sua carreira. Aparecem aqui diferentes técnicas que marcaram de uma forma ou outra a história da arte árabe entre a abstração e a figuração.
Em uma região historicamente afligida por conflitos bélicos, a arte política se faz presente por meio do artista palestino Abdul Hay Mosallam Zarara, que encarna em suas obras seu compromisso pessoal com a luta palestina pela libertação e pela paz. Membro ativo da OLP e ex-militar, tem utilizado seu trabalho para condenar a repressão violenta de sua terra natal e promover a solidariedade internacional em todo o mundo. Para Sharjah, ele apresenta obras realizadas com a técnica de serragem e cola, que representam momentos da vida cotidiana palestina, casamentos, reuniões sociais e celebrações tradicionais. Suas obras também servem como um valioso registro de tradição e de cultura em perigo de extinção.
A antiga política do Oriente Médio se conecta com a atual a partir dos dois trabalhos do artista libanês Rayyane Tabet, que apresenta em Rolled Engraved Steel, uma escultura que reproduz o oleoduto construído em 1946 para transportar petróleo da Arábia Saudita para o Líbano, atravessando a Síria e a Jordânia, e que em 1967 também passava pelas Colinas de Golã (atual Israel). Em função dos conflitos políticos de 1983, o oleoduto foi instalado, mas ficou sem uso. Hoje em dia, esse é o único objeto físico que cruza a fronteira dos cinco países em uma região muito consciente de seus limites.
Instalada em outro prédio da Bienal, a obra Cyprus é o quarto trabalho da série Five Distant Memories: The Suitcase, The Room, The Toys, The Boat and Maradona (2006), do artista libanês. Nela, ele descreve o exercício de recuperação de suas memórias mais antigas, cada uma ligada a um objeto em particular. Para esta obra, Tabet instala uma peça composta de um barco de madeira, que seu pai alugou há 29 anos na tentativa clandestina de fugir do Líbano com a família. Passados 30 minutos de viagem com destino a Chipre, deram-se conta de que esse tipo de transporte jamais poderia chegar a tal destino. A obra de arte começou no momento em que ele e sua família encontraram acidentalmente o tal barco, agora fora de serviço, na orla de Jbeil (Byblos, Líbano), em 2012.
A descentralização da Bienal se faz ao longo de toda a mostra, mas é a obra do argentino Adrián Villar Rojas que a torna mais evidente ao nos transportar para Kalba, a 1h30 do centro da cidade, na outra costa dos Emirados Árabes. Ela nos extrai do Golfo Pérsico para visitar uma antiga fábrica de gelo onde o artista apresenta Planetário, colunas construídas com diferentes materiais locais, orgânicos e inorgânicos, que se organizam como vestígios da interferência do ser humano no mundo e na natureza. Villar Rojas nos recebe com uma majestosa obra que faz refletir sobre a função do homem como criador de cultura.
A brasileira Jac Leirner também faz parte da Bienal com trabalhos de objetos encontrados, ready-mades e de uso cotidiano. Ela apresenta obras realizadas com bilhetes antigos, quebra-cabeças de Sudoku e réguas que se enredam com sua prática de arte povera, dadaísta e pop, ao mesmo tempo que recorda formalmente a arte concreta, o minimalismo e o construtivismo.
A Bienal de Sharjah permite, por ter recursos e apostar no profissionalismo, a produção de obras de arte de alta qualidade. Ela abre para toda a região, e para o mundo, uma porta para conhecer com maior aproximação a cultura árabe e sua inserção no mundo.
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