Aos cariocas, ou a quem estiver em dias de Cidade Maravilhosa, a exposição Le Parc Lumière – Obras Cinéticas de Julio Le Parc é um convite ao deleite sensorial, uma instigante experiência, proporcionada pelo lúdico jogo de luzes e sombras, que tornou célebre a obra do mestre argentino, pioneiro na arte cinética e ótica, e um dos personagens mais participativos nas discussões das transformações que a arte contemporânea deveria tomar na segunda metade do século XX. Ao questionar estatutos, individualmente ou agindo em grupos combativos, como o GRAV (Groupe de Recherche d’Art Visuel), Le Parc deu à sua conotação de arte um caráter político de inegável vigor. Aos 85 anos, ainda defende que individualizar a experiência com a obra de arte é elevá-la a uma condição transcendental, que torna dispensáveis explicações preconcebidas, para dar liberdade máxima ao ser humano de imergir em suas próprias interpretações e subjetividades.
Formado por Le Parc e outros dez jovens artistas, o GRAV foi, entre 1960 e 1968, signatário de uma série de manifestos provocativos. Unificado pela ideia de que deveriam estimular uma maior interatividade entre as obras de arte e o espectador, o grupo, que frequentemente expunha suas criações em ruas e praças públicas, também repudiava os mecanismos comerciais das artes visuais que, segundo o GRAV, perpetuava uma ditadura de valores para lá de questionáveis. O grupo também era contrário ao culto à personalidade, determinante para tornar a suposição da genialidade deste ou daquele artista um atalho para o objetivo único de fazer dinheiro. Curiosamente, mesmo com pouca projeção e vendendo quase nada, Le Parc foi premiado na Bienal de Veneza, em 1966, deixando estupefata a legião de entusiastas de Roy Lichtenstein, que comemorou antecipadamente a vitória do artista pop americano.
No manifesto assinado individualmente por Le Parc, Desmitificar a Arte, redigido três meses após o turbilhão de acontecimentos de Maio de 1968, impiedoso com seus próprios pares, o argentino provocou: “No momento atual, após baixar a maré de maio e junho em Paris, a situação no meio artístico continua quase idêntica à anterior. Um condicionamento sofrido desde sempre não pode ser alterado em dois meses de impugnação. Os hábitos permanecem. Os pintores continuam fazendo suas obras, os críticos criticando-as, as galerias e colecionadores dando-lhes um valor-dinheiro, e o grande público, com razão, continua indiferente como antes. Indiferente e distante de uma arte somente consumível – quem sabe? – pela burguesia. Uma arte que reafirma em si mesma todos os privilégios do poder, uma arte que mantém nas pessoas a dependência da passividade”.
Le Parc Lumière – Obras Cinéticas de Julio Le Parc permanecerá até 23 de fevereiro de 2014 na Casa Daros – agora, com as paredes do suntuoso casarão do bairro do Botafogo impregnadas de tinta preta, do rodapé ao teto, para proporcionar sedutor jogo de luzes e sombras das obras.
A retrospectiva reúne cerca de 30 instalações e quatro maquetes dos singelos mecanismos criados por Le Parc. O artista esteve presente em uma coletiva de imprensa promovida na Daros, dias antes da abertura da mostra. Sua presença foi decisiva para transformar este texto, a partir daqui, numa espécie de crônica da entrevista e do passeio, literalmente, interativo, que o maestro das luzes e engenhocas fez, no começo de outubro, com cerca de 20 jornalistas, que orbitaram em torno dele e de suas fascinantes criações, curiosos como crianças.
“Obrigado, adoraria que tal afirmação tivesse vindo de uma moça charmosa e não o contrário, mas não sou uma máquina. Posso ser sensível também. Em alguns casos, carinhoso.” O comentário bem-humorado e sugestivo do quão sedutor o velho Le Parc pode ser surge espontâneo e ligeiro, depois de um repórter perguntar a ele, como fazia para cuidar tão bem da saúde e de seu cérebro, imponentes como “grande obra de arte”, precisos como uma de suas máquinas. A propósito delas, surge em seguida a pergunta “Como seria sua arte hoje, se os suportes utilizados pelo senhor contassem com o sem-número de soluções tecnológicas disponíveis”. Lúcido, Le Parc relativizou a importância desses supostos avanços: “Fui obrigado a desenvolver a parte técnica de meu trabalho, pois, no começo de minha carreira, não tinha meios para comprar motores. Isso me deu a convicção de que é importante a relação entre o proposto e o realizado, mas é ainda mais importante o resultado e não os meios utilizados”. (Cabe aqui dizer: a exposição só foi possível, graças ao empenho de Käthe Walser, curadora técnica da Casa Daros, que desde 2009 dedicou-se ao restauro das obras, tendo, inclusive, de criar réplicas de alguns mecanismos, com o apoio do próprio Le Parc.)
“Integrar o visitante à exposição foi algo criado nos anos 1960. Antiautoritário, democrático e contra o culto à genialidade, Le Parc fez parte integral desse movimento, defendia a ideia de que a arte fosse acessível a todos e não só para uma elite.” O comentário de Hans-Michael Herzog, curador da retrospectiva, parece ganhar vida nos minutos seguintes. Conduzindo a todos pelos imponentes corredores, eclipsado pela escuridão e surgindo entre os feixes de luz de suas obras, Le Parc observa o fascínio que suas criações despertam em todos e parece atestar que a plenitude foi mesmo generosa com seus propósitos. Ao entrar na sala que acolhe a instalação Continuel-lumière au Plafond (1963-1996), o velho “maestro” se deita no sofa cube (espécie de cama, em tradução livre “cubo-sofá”), especialmente posicionado para observar a intrincada teia de reflexos que surgem de uma pequena hélice. Permanece ali, por minutos, e sorri, extático, ao tecer comentários sobre sua criação para uma jornalista argentina que se deita a seu lado. A simplicidade e a generosidade de Le Parc fazem crer, com o perdão dos adjetivos clichês, que ele é mesmo um ser iluminado e luminar. Verbaliza um discurso que, na prática, ganha força e exuberância por ser absolutamente legítimo.
Casa Daros – Até 23 de fevereiro de 2014. De quarta-feira à sábado, das 11h às 19h; domingos e feriados, das 11h às 18h – Rua General Severiano, 159 – Botafogo – Rio de Janeiro – (21) 2138-0850
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