Embora cultural e geograficamente muito distante, a Romênia também foi palco de um dos grandes conflitos do século XX: a Guerra Fria. A longa ditadura de Nicolae Ceausescu criou uma cena cultural e artística muito semelhante à aquela dos demais países comunistas do leste europeu: de um lado a arte oficial, que exaltava as conquistas do regime e seus ideais, sendo produzida e divulgada por artistas e instituições ligadas ao Estado. Do outro lado, a chamada arte marginal: produzida fora do regime e muitas vezes o criticando. Geta Bratescu fazia parte do segundo grupo.
Por estar em um país isolado do Ocidente, o trabalho da artista circulou muito pouco fora da Europa do leste e central. Mesmo assim ela expôs na Bienal de São Paulo de 1980, passando despercebida. Foi somente com a queda do Muro de Berlim, e mais especificamente com o fim do Regime de Ceausescu, ambos em 1989, que a artista começou a ser reconhecida no Ocidente.
Ativa desde 1960, Bratescu produziu tapeçarias, litografias, colagens, vídeos experimentais, fotografias, gravuras e vídeo-performances. Foi essa diversidade e complexidade que chamou atenção de Rodrigo Moura, atual curador de arte brasileira do MASP e diretor artístico de Inhotim entre 2014 e 2015: “Geta Bratescu é uma das artistas mais complexas e prolíficas com quem já tive contato na minha carreira. Seu trabalho vai de posições superconceituais até outras bem modernas e formalistas, sem que haja nenhuma contradição nisso. Parece-me que isso se deve a uma ideia de passagem, sem ruptura, entre a arte moderna e a arte contemporânea, algo que tem forte ressonância no contexto da arte brasileira e de outras margens ou do que chamamos de sul global”, explica Moura.
Foi justamente essa ausência de ruptura, tão identificada com a arte brasileira, que chamou a atenção de Moura e de Inhotim, já que o mega museu reúne uma robusta coleção de arte brasileira e mundial dos anos 1950 até os dias atuais. “A partir de 2009, Inhotim iniciou uma pesquisa para formar um fundo de aquisição de artistas históricos para a coleção. A ideia era incluir obras de um número finito de artistas, com aquisições pontuais que contassem um pouco a linhagem de história da arte que dialoga diretamente com o museu e seu acervo, dos anos 1950 em diante. Geta foi uma dessas artistas”, conta o curador. No entanto, a especificidade da artista exigia algo a mais: “Vimos que tínhamos diante de nós algo muito especial que demandava mais atenção, por isso mesmo optamos por adquirir um número grande de trabalhos da artista. Sua voz, como artista mulher trabalhando num contexto geocultural único, é de uma contundência enorme dentro do acervo”. Moura explica também que inicialmente se pensou em dedicar um pavilhão permanente exclusivo para Geta, o que acabou não sendo possível em função da fragilidade de alguns trabalhos, que não podem ficar expostos por períodos prolongados.
Um dos trabalhos que se destaca na sessão dedicada à artista em Inhotim é a série Medeia. A mitologia clássica aparece com alguma frequência no trabalho de Bratescu, sendo essa série um marcante exemplar. Revisitando a personagem principal da obra de Eurípedes, a artista a representa a partir de uma série de litografias. No entanto, a personagem se assemelha muito a uma ilha cercada de mar, o que denota um forte caráter político ao trabalho. Não só pela situação de isolamento político da artista, como também pelo fato de, assim como Medeia (que na história original assassina os filhos), ela ser também uma mulher disposta aos mais diversos sacrifícios.
Outro trabalho permeado por mitologia é a série Mitologie, um conjunto de litografias em papel executadas pela artista no ano de 1974. Na seqüência exposta em Inhotim, a artista representou cenas do novo testamento, como a decapitação de São João Baptista, a Arca de Noé e a visita dos Reis Magos, tudo em traços infantis.Apesar dos traços inocentes, a série é outra críitica ao regime comunista romeno, já que o que Bratescu faz aqui é representar imagens religiosas em um regime político no qual as crenças religiosas eram condenadas.
Para Rodrigo Moura, no entanto, os trabalhos mais expressivos expostos pela artista são as séries Vestigii (Vestígios) e Gradina (Jardim), nas quais ela lida com a colagem de tecido e de papel, levando a abstração geométrica para limites totalmente novos, explica o curador. Ele alerta, no entanto que reduzir a prática da artista à apenas isso é muito pouco. “Seus filmes experimentais, feitos nos anos 1970, são igualmente potentes e o trabalho de colagem que ela realiza diariamente, até hoje, no seu ateliê em Bucareste, são outros aspectos de uma obra em que a diversidade é uma chave de interpretação muito importante”, conclui.
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