Ponte para o pensamento complexo

Vista, desde o canal do Bósforo, da cidade de Istambul e do Istanbul Modern. A intervenção do artista inglês Liam Gillick, gravada no exterior do museu, "Hydrodynamica Applied" (2015), é a equação de Bernoulli, que formula conservação de energia e pressão/Foto: Patricia Rousseaux
Vista, desde o canal do Bósforo, da cidade de Istambul e do Istanbul Modern. A intervenção do artista inglês Liam Gillick, gravada no exterior do museu, “Hydrodynamica Applied” (2015), é a equação de Bernoulli, que formula conservação de energia e pressão/Foto: Patricia Rousseaux

“Minha mãe era uma arqueóloga. E ela tinha uma forma muito especial de dispor uma coisa ao lado da outra, ou instalá-las ou organizá-las, decorando a casa com objetos que ela tinha achado. Quando eu era criança, durante a guerra do Vietnã, ela recebia inúmeros visitantes em Washington, e quando eu acordava, pela manhã, nunca sabia exatamente quem tinha dormido em casa. Eu penso que a dOCUMENTA (13) e outras exposições que fiz tendem a recriar aquela atmosfera. Por um lado, a vitalidade de diferentes pessoas na casa, e, por outro, a presença dos objetos que ela tinha coletado, alguns preciosos e outros encontrados na rua. A importância do relacionamento entre material cultural, a história do passado e a política do presente.”

Neste parágrafo da entrevista à CI MAG, publicação turca, editada em Istambul, em setembro deste ano, a diretora artística Carolyn Christov-Bakarguiev, que acaba de ser considerada uma das TOP 10 dentre as 100 pessoas mais influentes no mundo da arte pela consagrada publicação inglesa ART Review, sintetiza poeticamente por que a Bienal de Istambul pode ter trazido um grande aporte para a validação da teoria do pensamento complexo, na contemporaneidade, e o quanto a arte contemporânea é um pivô, um elemento disparador para se refletir sobre o indivíduo, a história, a política, a ciência e a literatura.

No Istanbul Modern, inaugurado em 2004, 55 artistas foram especialmente convidados. O brasileiro Cildo Meireles apresentou o óleo sobre tela "Projeto de Buraco para Jogar Políticos Desonestos", 2011 (ver edição 31 da ARTE!Brasileiros)/Foto: Patricia Rousseaux
No Istanbul Modern, inaugurado em 2004, 55 artistas foram especialmente convidados. O brasileiro Cildo Meireles apresentou o óleo sobre tela “Projeto de Buraco para Jogar Políticos Desonestos”, 2011 (ver edição 31 da ARTE!Brasileiros)/Foto: Patricia Rousseaux

Edgard Morin, sociólogo e filósofo, inaugurou, nos anos 1970, a ideia do que passou a ser denominado como “pensamento complexo”.

“Se tentamos pensar no fato de que somos seres ao mesmo tempo físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, é evidente que a complexidade é aquilo que tenta conceber a articulação, a identidade e a diferença de todos esses aspectos, enquanto o pensamento simplificante separa esses diferentes aspectos, ou unifica-os por uma redução mutilante.”

Uma crítica do paradigma científico da modernidade, um desafio e uma motivação a pensar-nos, e ao nosso entorno, de forma diferente da maneira com que fomos induzidos e educados a pensar no século XIX e começo do XX, quando devíamos estudar e compreender os fenômenos em disciplinas estanques, isolados, e acreditar neles desde que pudessem ser mesurados no determinismo científico e mecanicista.

Desde 1970, os conceitos de “interdisciplinariedade” e “transdisciplinariedade”, seguidos pelo biólogo e psicopedagogo suíço Jean Piaget e pelo físico e filósofo franco-romeno Basarab Nicolescu, respectivamente, trouxeram a possibilidade de admitir a existência de um novo tipo de abordagem do conhecimento, aquele que sintetizasse a justaposição de várias áreas do saber, atravessando fronteiras epistemológicas de cada ciência e permitindo uma experiência dos diferentes níveis de realidade: reflexiva, sensorial e experimental.

Com o título SALTWATER: A Theory of Thought Forms (Água Salgada: Uma Teoria de Formas Pensantes), a Bienal de Istambul serviu de cenário para desenvolver essa ideia e provocar todos os “deslocamentos”, de espaço e de pensamento, possíveis.

A pé, de barco, de carro ou “tranvai”, visitantes da Turquia e do mundo todo acompanharam instalações, sites específicos e obras que abordavam diferentes camadas de história, de geografia e de uso das tecnologias.
Nas palavras de Carolyne, “há correntes de pessoas, de ideias, de guerras, de armas, de amor – de tudo, mas não está sempre visível”.

Os movimentos oceânicos que banham as costas da Turquia, com correntes que atravessam o canal do Bósforo, do Mediterrâneo ao Mar de Mármara e ao Mar Negro, produzem movimentos subterrâneos que carregam detritos de diversos continentes e albergam infinitas histórias de poder da nossa civilização.

A cidade de Constantinopla  – hoje Istambul – está localizada entre as principais rotas comerciais ligando a Ásia à Europa, e foi sede do Império Romano e Bizantino, assim como posteriormente sede do Império Otomano, que nasceu no século XI, quando tribos turcas nômades se fixaram na Anatólia, região que hoje é parte da Turquia. O Império Otomano foi um dos mais fortes durante os séculos XV e XVI, englobando boa parte do Oriente Médio, do Leste Europeu e do norte da África. Foi perdendo supremacia ao longo da história. Os turcos lutaram na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) junto à Alemanha. A derrota no confronto tumultuou ainda mais o já dilacerado império, que acabou sendo abolido pouco depois, em 1923, quando foi proclamada a República da Turquia.

Um dos traumas sociais que a Bienal traz à tona, desde diferentes perspectivas, é o genocídio, em 1915, de milhares de armênios suspeitos de “sentimentos nacionalistas” hostis ao governo central. Em 26 de maio de 1915, uma lei especial autorizou a deportação dos armênios por razões de segurança interna, seguida, no dia 13 de setembro, de uma lei que ordenou o confisco de seus bens. A população armênia de Anatólia e Cilícia foi condenada ao exílio nos desertos da Mesopotâmia. Muitos armênios morreram no caminho ou em campos de concentração. Cem anos depois, o governo republicano turco se vê envolvido mais uma vez em conflitos com países limítrofes, neste caso com a Síria.

A arte traduz o sofrimento humano. E em cada época esse incorpora e desenvolve sintomas diferentes.

O artista contemporâneo investiga as dores, a geografia, a biologia, o passado. Atualiza as imagens da memória e as transforma em presente. Investiga e constrói arquivos. Formas de expressão que organizam o saber desde diferentes perspectivas e revisitam a memória vieram para ficar.

A beleza não é mais a mesma já há muito tempo.

 


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