Potências em construção

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“No names, But names”, instalação solo da artista no setor frame da feira de arte Frieze, no espaço da Galeria Jaqueline. Crédito: Patricia Rousseaux


Em maio deste ano
, a artista carioca ganhou visibilidade internacional ao apresentar No Names, but Names, um projeto individual com motivações políticas para a prestigiada feira Frieze New York. A instalação integrava a seção Frame – dedicada a projetos solo de 18 galerias fundadas a partir de 2009 – e trazia 75 desenhos esculturais dispostos de maneira que o público podia circular entre eles. “Muitos visitantes, tanto profissionais quanto interessados em geral, permaneceram um tempo considerável na instalação de Bolsoni. Sua maneira de compreender a escultura nos levou à conclusão de que seu trabalho é muito interessante e relevante”, contou à ARTE!Brasileiros o curador Fabian Schöneich, responsável pela seção.

A instalação, de caráter ambíguo, podia tanto ser compreendida como um grupo de pessoas marchando em forma de protesto quanto um cemitério, onde as silhuetas de papelão atuariam como lápides. Sustentando cada silhueta, um carrinho similar a esses usados na construção civil, imprimia instabilidade ao conjunto. “Individualmente eles não têm um nome, mas juntos adquirem uma presença”, ela avalia. Alguns desenhos traziam interpretações da própria forma do carrinho que os sustentava. O conjunto falava sobre si, como uma investigação de identidade, de seu próprio nome. À primeira vista, as obras dizem algo sobre o desenho e suas fronteiras com a escultura, mas, em olhar mais atento, nota-se que também falam de pessoas. Uma tentativa da artista de emancipá-las, de retirá-las de sua condição invisível e trazê-las para o visível a partir de suas potências inerentes.

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“No names, But names”, instalação solo da artista no setor frame da feira de arte Frieze, no espaço da Galeria Jaqueline. Crédito: Patricia Rousseaux

Débora Bolsoni nasceu no Rio de Janeiro em 1975. Cresceu no bairro de Jacarepaguá, considerado como a região “atrás dos morros” da cidade e que na época ainda era rural e preservava construções coloniais. Naquele período, a Barra da Tijuca, bairro vizinho, encontrava-se em plena construção – assim como a casa da própria artista – devido à implementação do plano piloto concebido pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa, em 1969. A área, que abrangia cerca de 120 quilômetros quadrados, transformou-se num grande canteiro de obras e era vista pelo arquiteto como possível local para abrigar a sede da prefeitura. O projeto foi perdendo suas características ao longo das décadas, dando lugar às especulações imobiliárias principalmente durante o boom populacional dos anos 1980. Por conta disso, Débora cresceu testemunha dessa forte transformação na paisagem e atenta às características próprias das construções residenciais, que já haviam abandonado as regras daquele plano inicial. “Montes de areia, brita, milheiros de tijolos empilhados e sacos de cimento demarcavam áreas de futuras residências num universo de loteamentos a perder de vista”, ela escreveu em sua tese de mestrado.

Dos 13 aos 16 anos estudou no Liceu de Artes e Ofícios e depois na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde teve aulas de arte conceitual com Anna Bela Geiger. Durante aquele tempo, lia muito, principalmente os clássicos literários internacionais e brasileiros, além de escutar muita “poesia musicada”, como ela se refere à música popular brasileira. A união dessa base literária às observações das transformações urbanas na adolescência teria sido a gênese do ato político e poético de sua prática, cuja plasticidade estaria fundamentada em materiais acessíveis e de fácil manejo usados no cotidiano e na construção civil.

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“No names, But names”, instalação solo da artista no setor frame da feira de arte Frieze, no espaço da Galeria Jaqueline. Crédito: Patricia Rousseaux

Em 1993, Débora passou alguns meses em Londres, mas foi quando retornou ao Brasil e concluiu sua graduação na USP, cinco anos mais tarde, que começou a dedicar-se mais seriamente à prática artística e, consequentemente, enxergar algumas questões se manifestando claramente em seu trabalho. “Não se trata de fazer um elogio à arquitetura doméstica, mas de querer revisitar, de misturar suas formas de expressão com todas as idiossincrasias envolvidas na concepção de um lugar próprio”.

Exemplos dessas manifestações podem ser vistas na série Baldios (1999-2013), na obra Duas Ladeiras (2000), Ed. Cimenticola (2011) e Sextavado e Peças de Reposição (2013). Uma tentativa mais de colocar em suspenso um instante do processo de construção de um ícone do que elevá-lo a um status de monumento. “É como olhar para uma incógnita.” A escala humana presente em seu trabalho seria também um meio de criar uma identificação no espectador com o corpo, a persona da obra. Seus títulos atuam de forma a suscitar essa presença, como na última palavra da obra Quebra-Mola de Paçoca (2007) que seria como o sobrenome da peça ou a Caixa Klenir (2000), sendo essa última também o nome da caixa.

 Existe ainda em sua prática uma doce rebeldia, uma desconfiança fenomenológica que a leva a praticar um exercício constante de estranhamento e desconstrução da natureza das coisas. “Geralmente existe algo que a coisa já carrega. A vontade é de amplificar esse algo, identificando-o com outra coisa. Tenho um gosto por atuar nessa composição das potências internas das coisas, independentemente da função que elas apresentem em um primeiro plano.” Por fim uma descaracterização dos objetos, termo que ficaria mais claramente à mostra em sua individual Descaracter, na Galeria Jaqueline Martins, também em maio deste ano. Se existe um consenso sobre um tipo de uso, a artista vai fazer de tudo para revê-lo. Se uma coisa está capturada pelo sistema, então ela buscará maneiras de libertá-la de sua amarra de sentido. Para ela, tudo ao redor parece apresentar um convite emancipatório.


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