Preto no branco

No princípio não havia cores. Nem curvas. Apenas um quadrilátero escuro em um fundo branco. Uma obra pequena (17 cm x 24 cm), mas que, com a força de um David, deu o golpe de misericórdia na arte figurativa. Não por acaso, O Quadrado Negro sobre Fundo Branco (1915), quadro de Kazimir Malevich (1878-1935), é o primeiro a receber o visitante na exposição Adventures of the Black Square – Abstract Art and Society 1915-2015 (Aventuras do Quadrado Negro – Arte Abstrata e Sociedade 1915-2015), que ficou em cartaz até 6 de abril, na Whitechapel Gallery, em Londres. Quando, há cem anos, Malevich pendurou O Quadrado Negro sobre Fundo Branco como destaqueda intitulada Última Exposição Futurista de

Pintura 0.10, em Petrogrado (hoje, São Petersburgo) entrou para o mapa transviado da história da arte. As pinturas figurativas, as paisagens e os santos, assim como os regimes políticos que representavam, estavam mortos. O lugar das madonas, cujos altares nos lares ortodoxos soviéticos deram lugar ao tal quadrado preto, servia tão somente à forma (nem a cor de Mondrian sobreviveu). Nascia, com as promessas de mudanças da Revolução de 1917, um subproduto da arte abstrata que rompe os últimos laços que ligam a obra à realidade e ainda mais radical: o suprematismo.

Considerado o marco do movimento suprematista, uma das correntes modernas das chamadas vanguardas europeias, o “preto no branco” de Malevich queria romper com tudo o que até então era considerado arte e com todas as amarras burguesas que ela endossava, indo ainda mais fundo na simplicidade das formas geométricas planas, sem qualquer preocupação de representação. A ideia da mostra na Whipechapel é conectar pedras fundamentais do abstracionismo/suprematismo com outras obras inspiradas pelo movimento ao longo dos anos, incluindo trabalhos de artistas brasileiros.

Urbanos e utópicos

Assim como O Quadrado Negro, os primeiros trabalhos da exposição espelham uma sociedade tensa e dinâmica, onde forças se opõem continuamente. São obras visceralmente urbanas. Formas rígidas e geométricas apresentam uma mensagem sem meias palavras e traçam a linha condutora dessa ambiciosa mostra. Aos poucos, o visitante percebe que a nova forma de expressão, que nasceu na Rússia, espalhou-se pela Europa e cruzou o Atlântico, ganhou força e releitura nas obras de artistas latino-americanos. O objetivo da curadora Iwona Blazwick é mostrar como uma nova forma de arte está intrinsecamente relacionada à sociedade e à política, reunindo mais de uma centena de obras de artistas modernos e contemporâneos, de diversos países e épocas, falando a mesma língua – ainda que em dialetos diversos – sobre a disrupção com o passado e da busca do que poderia

(e deveria) vir a ser o futuro. Juntos, trabalhos de mestres como Carl Andre, David Batchelor, Dan Flavin, Andrea Fraser, Piet Mondrian, Gabriel Orozco, Aleksandr Rodchenko, Sophie Taeuber-Arp, Rosemarie Trockel, Theo Van Doesburg, Andrea Zittel e nosso Hélio Oiticica – que buscou a superação da noção de objeto de arte ou a arte sem sujeito, como preferiam os suprematistas – estão dispostos cronologicamente e mostram que menos pode ser mais. E essa estética continua a impactar a tipografia, a fotografia, a arquitetura e o design pós-modernos.

As obras – pinturas (não, elas não morreram, como apregoou Malevich), esculturas, fotos e filmes – são agrupadas em quatro temas: Comunicação, que examina as possibilidades da abstração para mobilizar mudanças radicais; Arquitetura, que investiga como a abstração pode sustentar espaços socialmente transformadores; Utopia, imaginando uma nova e ideal

sociedade, que transcende a hierarquia e as classes; e O Dia a Dia, mostrando como a arte abstrata se infiltra em todos os aspectos da cultura visual: logos corporativos, moda, impressos e construções.

Brasileiros

Os grandes pioneiros do neoconcretismo no Brasil estão bem representados na Whitechapel. O Metaesquema 464 (1958), de Oiticica, retorna ao tema do preto sobre o branco, quase meio século e duas grandes guerras depois do Quadrado Negro, de Malevich. Nessa obra,

quadriláteros parecem suspensos, ora alinhados em linha reta, ora desafiando as linhas paralelas. Outro destaque é a escultura Caranguejo, de Lygia Clark, em alumínio e dobradiças, e as 12 peças de Livro Noite e Dia, de Lygia Pape. A mostra traz ainda um quadro em madeira gravada e pintada em acrílico de Judith Lauand, a única mulher do grupo Ruptura. A propósito, a presença feminina na mostra, não somente de artistas brasileiras, é notável. Entre o grupo dos brasileiros estão também um óleo  sobre tela do concretista Waldemar Cordeiro (1958), as  fotos urbanas de Gaspar Gasparian e as formas geométricas

que nascem de tipos da máquina de escrever de  Ivan Serpa, além de Geraldo de Barros. Agrupadas na  primeira galeria da exposição, as obras se destacam. Falam a mesma língua de outros artistas como Max Bill (Simultaneous Constructions of Two Progressive  Systems, 1945/51), mas com um sotaque distinto e igualmente subversivo.

Ponto de contato

Os latino-americanos começam a subverter as cores planas dos primeiros abstracionistas. Uma subversão da subversão, que quebra as rígidas estruturas geométricas, explora planos tridimensionais e interativos. A transformação é evidente na pequena escultura de caixas de fósforo pintadas em vermelho berrante de Lygia Pape (1964). Uma virada de página, que estica ao máximo o ponto de contato – o cordão umbilical dos suprematistas. Para alguns críticos, como Laura Cumming, do The Guardian, e Michael Prodger, do New Statesman, esse

cordão vai se esgarçando ao se aproximar do século XXI e a mostra vai perdendo o fio da meada suprematista (leia-se a ideologia que regia o movimento). A curadora, Iwona Blazwick, insiste que a arte abstrata continua, sim, a perseguir a liberdade e as ideias revolucionárias

como no começo do século XX. De fato, nem sempre é possível encontrar marcas do chão, que os primeiros abstracionistas racharam nas obras mais recentes, à mostra no andar de cima da Whitechapel. Entretanto, o DNA do movimento se multiplica e se transforma continuamente, como a sociedade em constante mutação. Talvez esteja na obra Cogito, Ergo Sum (Penso, Logo Existo, 1988), de Rosemaire Trockel, uma tapeçaria em preto e branco, a referência mais explícita ao Quadrado Negro de Malevich. Um quadrilátero que, quando visto

de perto, já não é assim tão preto. Transformou-se em um senhor grisalho, vigiando seus descendentes e que, apesar de pequeno, poderia ser um ponto final – mas é o ponto de partida.

Colaborou Juliana Resende/BR Press

Aventuras do Quadrado Negro – Arte Abstrata e Sociedade 1915-2015

Até 6 de abril

Whitechapel Gallery

77-82 Whitechapel High St. – Londres

www.whitechapelgallery.org    


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