Puras Misturas, exposição em cartaz no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, até o final de outubro, celebra a riqueza e diversidade da cultura do Brasil, apresentando um contraponto entre variadas formas de criação artística produzidas em diferentes tempos e lugares. Ao construir diálogos entre as culturas letradas e iletradas, ou cultas e populares, nosso objetivo foi evidenciar como ambas se alimentam mutuamente, em um processo permanente de recriação e ressignificação, que acaba por tornar equívoca a própria oposição entre essas duas esferas.
Para o título da mostra, tomamos emprestada a expressão paradoxal e contraditória cunhada pelo escritor João Guimarães Rosa porque ela expressa com poesia a trama que, a nosso ver, constitui a força maior da cultura brasileira. E esse processo é dinâmico, está sempre se reinventando.
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A exposição tem números superlativos: cerca de 1.600 peças expostas, 120 participantes e um painel de 160 m de comprimento, com uma síntese da história cultural de nosso País no que diz respeito às ações voltadas para a valorização das culturas do povo, tudo em uma área de cerca de 2.500 m2. Totalmente bancada por recursos públicos, da Secretaria Municipal de Cultura, ela é um aperitivo do Pavilhão das Culturas Brasileiras, que vai ser criado por iniciativa do secretário Carlos Augusto Calil.
No processo de desenvolvimento do projeto museológico da nova instituição, sendo feito desde o final de 2007, logo de cara rejeitamos uma expressão do tipo “Museu de Arte Popular”. A nosso ver, ela traz o risco de colocar seu conteúdo em um gueto, levando ao isolamento. Além disso, se não há um “Museu de Arte Erudita”, por que haveria um de “Arte Popular”?
Materializar um enunciado conceitual complexo – que foge do maniqueísmo e trabalha justamente os hibridismos de uma dinâmica cultural em transformação – foi o principal desafio da exposição que anuncia a criação do Pavilhão das Culturas Brasileiras.
Procuramos resolvê-lo colocando logo na entrada a mostra Viva a Diferença, com 75 banquinhos, de variados formatos e materiais. Ela coloca em pé de igualdade bancos confeccionados por povos indígenas, por comunidades artesanais de várias partes do País, por artesãos contemporâneos e por designers, como Sérgio Rodrigues, Carlos Motta, Marcelo Rosenbaum, Michel Arnoult, Lina Bardi, Nido Campolongo e Claudia Moreira Salles. Ao focar em um objeto com uma única função – sentar-se -, mas dezenas de formas, é possível trabalhar a ideia de que cada forma expressa, em última instância, a visão de mundo de seu criador. O artesão que recicla ferro velho e espaguetes de plásticos em Juazeiro do Norte para fazer um banco perfeitamente adequado à sua função tem, assim, o mesmo valor que Sérgio Rodrigues com o seu celebrado Mocho, um dos ícones do design brasileiro, de 1951, que foi projetado justamente a partir de um tamborete usado para tirar leite da vaca. O fato de as pessoas poderem observar os bancos de perto e, mais do que isso, experimentá-los, usá-los, serve para aproximar o museu dos visitantes, ajudando-os a reconhecer a expressão da diversidade.
O enunciado conceitual se aprofunda no módulo Fragmentos de um Diálogo, em que 12 células temáticas se sucedem em um percurso contínuo. Com caráter assumidamente fragmentário, as células pontuam conversas entre criações de diferentes tempos e lugares. Tupi or not tupi, por exemplo, evidencia como Victor Brecheret bebeu nas tradições indígenas para compor a escultura moderna brasileira. Tu me Ensina a Fazer Renda traz louças projetadas por Marcelo Rosenbaum e cerâmica de Caroline Harari a partir da rica tradição das rendas tecidas por artesãs nordestinas. Avatares do Alvorada mostra como o traço de Oscar Niemeyer, nas colunas do Palácio da Alvorada, foi reinterpretado por pessoas comuns em portões, muros e objetos criados em todo o País; o que por sua vez é reinterpretado por artistas contemporâneos, como Emmanuel Nassar e Delson Uchôa.
Além dos já citados, participam desse módulo com obras originais artistas como Alex Flemming, Arthur Bispo do Rosário, Artur Pereira, Di Cavalcanti, Farnese de Andrade, Mestre Guarany, Fulvio Pennacchi, Gilvan Samico, J. Borges, José Antônio da Silva, Luiz Hermano, Mauro Fuke, Mestre Vitalino, Paulo Laender, Rubem Grilo, Rubem Valentim, Samico, Tarsila do Amaral, Ulisses Pereira Chaves, Vicente Rego Monteiro e Zé do Chalé. Além dos designers Irmãos Campana, Lino Villaventura e Ronaldo Fraga. Obras que não puderam estar ao vivo – como pintura rupestre e manifestações de arte urbana – são apresentadas em projeção multimídia, recurso nem sempre utilizado quando se fala de criações do povo.
Homenagear quem veio antes
Não seria possível, a nosso ver, anunciar uma nova instituição sem fazer uma homenagem a quem veio antes de nós, abrindo o nosso caminho. Assim, concebeu-se o módulo Da Missão à Missão, constituído por uma extensa linha do tempo. O painel tem início com a Missão de Pesquisas Folclóricas realizada, em 1938, por iniciativa de Mário de Andrade. À frente do então Departamento de Cultura do município de São Paulo, Mário determinou que quatro pesquisadores percorressem o Nordeste e o Norte do País para registrar as músicas e bailados populares do Brasil. O acervo coletado pela equipe naquela ocasião será transferido para o Pavilhão das Culturas Brasileiras.
Depois dessa ação seminal, destaca-se a atuação dos intelectuais reunidos em torno do Museu do Folclore Rossini Tavares de Lima, que ocupava o prédio da Oca até o ano de 2000, e cujo alentado acervo com cerca de 3.500 peças também ficará com o Pavilhão. A partir daí, pontuam-se ações empreendidas por nomes como Gilberto Freyre, Aloisio Magalhães e Lina Bo Bardi, até chegar à apresentação sintética do projeto do Pavilhão e de sua missão, que será “pesquisar, registrar, salvaguardar e difundir a diversidade cultural brasileira, contribuindo para o diálogo entre as diferentes culturas e para o reconhecimento do valor do patrimônio material e imaterial das culturas do povo”.
O painel abre espaço também para o projeto de restauração do prédio, que o secretário Carlos Augusto Calil pretende, se tudo der certo, iniciar ainda este ano. O projeto do arquiteto Pedro Mendes da Rocha mantém as virtudes da arquitetura original, preservando as qualidades do desenho de Oscar Niemeyer, sobretudo a amplitude de espaço e a leveza do edifício. Longe de um perfil nostálgico ou regressivo, este se pretende um museu da contemporaneidade, capaz de responder com uma ação afirmativa a questões do presente e capaz de contribuir com a transformação social. Queremos contribuir para que possamos, todos, nos ver como produtores de cultura, e não apenas consumidores e espectadores.
*Adélia Borges coordenou a elaboração do projeto do Pavilhão das Culturas Brasileiras e é curadora-geral de Puras Misturas. A equipe curatorial da exposição é integrada também por Cristiana Barreto, José Alberto Nemer e Vera Cardim. O projeto museológico foi feito com a colaboração de Cristiana Barreto, Marcelo Manzatti e Maria Lúcia Montes, entre outros.
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