O Espírito de Tudo poderia soar um nome pretensioso para uma exposição. Não é. Rosângela Rennó, como poucos artistas, consegue dar às suas obras relações tão complexas, que sua mais recente mostra no Oi Futuro, no Rio, com curadoria de Evangelina Seiler, de fato merece um título tão amplo.
É recorrente em sua obra a investigação do uso da imagem na sociedade contemporânea em suas múltiplas facetas: desde sua afirmação como linguagem (A última foto, 2006), como elemento constituinte de identidades (Série Vulgo, 1998), criadora de memórias coletivas (Série Vermelha, 2000), constituinte de afetos (Cerimônia do Adeus, 1997 – 2003), entre outras marcas.
Agora, em O Espírito de Tudo, Rennó reúne seis conjuntos de obras, algumas delas que prescindem até mesmo da imagem, daí a referência no título. É o caso de Per Fumum, um agrupamento de incensos dispostos no primeiro piso que podem ser acesos pelos visitantes. Uma das mais antigas tradições da cultura humana, as essências, lembra a artista na obra, também é potente disparadora de memória.
Per Fumun está em estreito diálogo com As horas viajantes, uma radical intervenção de Rennó em uma vitrine existente na instituição com dezenas de pequenos módulos que contam a história das comunicações, através de aparelhos como telefones, maquinas fotográficas e televisões, entre outros. Nesse ambiente, Rennó introduziu conjuntos de frascos de perfumes – em um total de 250 – criando aproximações às vezes temporais, isso é, fragrâncias criadas na mesma época de um telefone, por exemplo, e às vezes meramente estéticas.
“Para mim, a conexão entre cheiro e memória vem do Proust, que mostrava como se podia construir catedrais a partir de uma gota de perfume”, contou Rennó em meio à exposição. A intervenção nesse museu vertical das comunicações se completa com filtros que praticamente esfumaçam os objetos em exposição, ressaltando apenas, por meio de recortes, os vidros de perfume.
Trata-se aí de um exemplo de site specific, isso é, obra criada para um lugar definido, e que dificilmente ganharia sentido tão completo em outro local. Contudo, ela revela ainda um procedimento recorrente, mas pouco falado sobre a obra de Rennó, que é sua capacidade de criar ambientes completos, muito mais ricos que mostras convencionais com objetos dispostos nas paredes de forma sequencial. Rennó, assim como Ana Tavares, em cartaz na Pinacoteca, em São Paulo, é dessas artistas que renovam e repensam o espaço expositivo, não se preocupando apenas com o objeto a ser exibido, mas com o contexto no qual ele se encontra, transformando o próprio ambiente em uma complementação da obra.
Foi assim, por exemplo, em Menos Valia (leilão), 2010, exposto na Bienal de São Paulo, onde Rennó expunha objetos coletados em mercados de pulga, alterados por ela, e expostos novamente como se estivessem em um antiquário.
Em O Espírito de Tudo, novamente ela cria ambientes adequados a cada série, e Lanterna Mágica é outro bom exemplo dessa poética. Aqui, ela se apropria de antigos aparelhos de projeção de imagens, as tais lanternas mágicas, algumas criadas para funcionar com querosene. Em um ambiente escurecido, essas lanternas projetam imagens um tanto misteriosas, mescladas a fotografias ampliadas. Contudo, em algumas o centro está esbranquiçado, em outros com um buraco negro, alterações da imagem através da luz.
Já em Turista Transcendental, Rennó assume um homônimo que percorre lugares exóticos da Índia, África, Bolívia ou México, em um total de dez destinos, para em cada um realizar um vídeo que escapa totalmente aos padrões de viagem convencional. Em um momento que imagens turísticas cada vez mais se tornam clichês, a artista consegue transformar o exotismo em uma espécie de “nova” nouvelle vague, com câmera na mão aparente, tomadas longas e ação reduzida ao mínimo, evitando a aparência para valorizar a essência – o espírito de tudo! Os dez vídeos são projetados na mesma ampla sala, criando assim um caleidoscópio de imagens em movimento.
Finalmente, no último piso expositivo, Rennó apresenta duas obras: Realismo Mágico, com espectros de luz em movimento, e Círculo Mágico, um registro de sua intervenção nos objetos da coleção da Fundação Eva Klabin, em 2014.
O Espírito de Tudo é mais um momento importante na carreira de Rosângela Rennó, que marca como a imagem pode ser abordada até mesmo de forma imaterial, uma contradição que tem tudo a ver com as crises do século 21.
Serviço – O Espírito de Tudo – Individual de Rosângela Rennó
Oi Futuro Flamengo – Rua Dois de Dezembro, 63
Até 29 de janeiro 2017
Oi Futuro Flamengo – Rua Dois de Dezembro, 63
Telefone: (21)3131-3060
O jornalista Fabio Cypriano viajou a convite da produção da mostra
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