À primeira vista, aqueles dez painéis lado a lado, todos em preto e branco, parecem repetições da mesma imagem. Apenas o 11o, maior, difere levemente do conjunto. Praticamente, o mesmo ângulo para cada foto dá essa falsa impressão inicial. Em cada painel, um episódio da vida de Jesus Cristo e da Via Sacra, pintados entre 1436 e 1445 pelo italiano Fra Angelico, e retratado pelo fotógrafo e artista plástico brasileiro Mauro Restiffe, formado em cinema na FAAP e com obras espalhadas em várias galerias do mundo.
Restiffe destinou apenas um clique de sua Leica para cada cena da Via Sacra. Teve de ser rápido, pois é proibido fotografar as pinturas renascentistas, abrigadas em câmaras de oração, iluminadas naturalmente por uma pequena janela no Mosteiro de San Marco, em Florença, Itália.
Foi uma rapidez eficiente, porém. Ao se deparar com os afrescos de Fra Angelico no ano passado em passeio pela Itália, Restiffe ficou “em transe”, como define, e percebeu que aquelas imagens, reveladas na folha de contato – ele só trabalha com filme fotográfico em preto e branco, dispensando o que chama de “imediatismo” da imagem digital –, permitiriam uma releitura em uma nova obra de arte.
É essa releitura que compõe a mostra San Marco. No mosteiro em Florença, Restiffe conseguiu tirar apenas 25 fotos. Para a exposição na Galeria Fortes Vilaça, selecionou 11 dessas imagens, todas realçando os arcos de cada câmara de oração e das pinturas de Fra Angelico. São dez painéis de 1,2 m de largura por 80 cm de altura, expostos lado a lado, e um painel central, de 2 m de largura por 1,3 m de altura.
A primeira releitura dos afrescos de Fra Angelico é ter a possibilidade de vê-los em conjunto. Como elas foram pintadas originalmente, uma a uma, na parede interna de cada câmara de oração, ao visitante fica impossível ter uma noção do todo – o que Restiffe revela, agora, em sua San Marco. “As pinturas estão em células; não é possível ver uma em relação à outra. E eu trago justamente isso: essa totalidade”, diz Restiffe.
“Fui de alegre, não sabia o que ia encontrar no Mosteiro. Conhecia a obra de Fra Angelico, mas não sabia dessas pinturas e fiquei absolutamente deslumbrado”, conta ele, lembrando que também tentou repetir nas imagens os arcos que compõem a entrada das câmaras de oração. “Há nesses painéis certo voyeurismo, como se o espectador estivesse vendo através de um buraco de fechadura”, descreve Restiffe. Além disso, ele acredita que com a repetição dos arcos em cada imagem, acrescentou a partir de um elemento clássico uma estrutura minimalista.
Restiffe lembra ainda que os afrescos de Fra Angelico, mesmo com predominantes tons pastel, são extremamente coloridos. Cores que o fotógrafo reduziu aos sutis preto e branco, reforçando o minimalismo de sua obra. “A pintura original perde o status de subject; o que passa a contar é o conjunto”, descreve Restiffe, acrescentando que não é a primeira vez que ele trabalha em cima do trabalho de outros artistas. “Eu não pinto, mas meu trabalho sempre foi influenciado pela pintura.”
As repetições em cima do mesmo tema, como na mostra San Marco, são recorrentes nas obras de Mauro Restiffe. Ele lembra, por exemplo, de uma série de fotografias que fez em Taipei, na ilha chinesa de Taiwan. “Retratei, em vários semáforos, os inúmeros motociclistas da cidade, que se alinham à frente dos carros quando o sinal está vermelho, como se fossem um batalhão de frente.” Em fotos preto e branco, ele flagrou essa cena do cotidiano da cidade chinesa em inúmeras ocasiões. Apesar de obviamente diferentes umas das outras, as imagens mantêm a unidade: a linha de frente de motoqueiros no trânsito, à espera do sinal verde, em uma série intitulada Red Light Portraits, ainda inédita e, inclusive, candidata preterida em favor da mostra San Marco na Fortes Vilaça.
Entre outras obras do artista, estão Five on Fifty, Nova Luz, Planos de Fuga e Tlatelouco. Mas certamente uma das mais famosas, segundo o próprio artista, é Empossamento, feita em 2003, e que retrata o dia da posse do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu primeiro mandato, em Brasília. A série de imagens revela a chegada de milhares de pessoas para presenciar o discurso de posse de Lula. Nada de vermelho PT, porém. São todas imagens em preto e branco, marca registrada do fotógrafo-artista.
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