Sete voltas ao contrário

sua cidade empática (2011), instalação de olafur eliasson, em colaboração com karim aïnouz, exibida no 17ºfestival sesc_videobrasil e registrada no livro Videobrasil: três décadas de vídeo, arte, encontros e transformações
sua cidade empática (2011), instalação de olafur eliasson, em colaboração com karim aïnouz, exibida no 17ºfestival sesc_videobrasil e registrada no livro Videobrasil: três décadas de vídeo, arte, encontros e transformações

No porto de Ouidah, Benim, uma das principais saídas de escravos africanos para as Américas, sete voltas em sentido horário ao redor de uma árvore faziam parte do ritual para apagar o passado, antes de embarcar para a nova terra. Em 2014, Paulo Nazareth viajou ao local para reencenar essa caminhada, estabelecendo com o fluxo contrário (anti-horário e do Brasil para a África) o dever de se lembrar da história colonial para libertar o presente de um legado de subserviência física e simbólica.

  O registro audiovisual de etapas da jornada do artista foi instalado em monitores que circundam um pilar da Área de Convivência do Sesc Pompeia, principal espaço da mostra Panoramas do Sul, resultante do 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Discreta em comparação com as inúmeras telas de projeção grandes, mas situada na porção mais central do edifício, a obra organiza uma marcha a contrapelo que emana pelo entorno, criando uma chave de leitura para os trabalhos expostos. Opondo-se a toda sorte de dogma, estão reunidas nessa mostra diferentes impostações de sotaques e subjetividades à revelia dos monumentos oficiais de Estado, derivas para reinventar identidades e territórios estanques, ficções e suspensões que amortizam as pretensões de verdade e objetividade comumente associadas aos arquivos da memória coletiva.

O número de artistas participantes é signi­fi­­­­cantemente menor do que na edição anterior do festival. Em vez de 110 nomes, agora a comissão curatorial formada por Bernardo de Souza, Bitu Cassundé, João Laia e Júlia Rebouças, além da diretora Solange Farkas, selecionou 48 artistas via chamada internacional (43 com obras prontas e cinco com projetos inéditos) e cinco por meio de convite. A redução foi fundamental para melhorar a qualidade de visitação da mostra (que se vê com calma em cerca de quatro horas, no Sesc Pompeia, e mais uma hora, no Galpão VB, recém-­inaugurado na Vila Leopoldina) e amadurecer ainda mais o seu perfil dentro do circuito local e internacional de arte.

Junto a tantas outras iniciativas hoje existentes em São Paulo, o festival não precisa funcionar como uma Bienal dos anos alternados a esse evento, no sentido de tornar-se uma mostra necessariamente extensa. Precisa, sim, abraçar cada vez com mais afinco a especificidade de uma plataforma e de um léxico de seleção a partir do “sul geopolítico” do mundo, o que, em termos práticos, exclui de seu escopo a arte da América do Norte e de países europeus hegemônicos. A fundamentação conceitual desse critério – que, apesar de pautar as edições do festival desde a década de 90, ainda não havia sido abordada em profundidade – ganhou este ano uma pertinente publicação, o livro Panoramas do Sul – Perspectivas para Outras Geografias de Pensamento, organizado por Sabrina Moura.

Calcado em dar visibilidade e articular os circuitos periféricos da arte internacional, o 19º Sesc Videobrasil volta-se para o processo de escolha de obras e projetos e não para o enquadramento das mesmas em ensaios curatoriais. Neste ano, a seleção tem uma qualidade notável e parece ponderar motivações tanto críticas quanto prospectivas diante da dinâmica de legitimação do circuito de arte. Entre os brasileiros, figuram tanto jovens proeminentes, como Clara Ianni, João Castilho, Waléria Américo e Cristiano Lenhardt, quanto artistas atuantes há mais tempo, como Solon Ribeiro e Vera Chaves Barcellos, cujo trabalho termina sendo menos visto, talvez por escapar aos predominantes programas voltados para o início de carreira. De outros países, expõem ineditamente para o público local nomes como o chileno Enrique Ramírez, o libanês Roy Dib, o chinês Hui Tao, o turco Köken Ergun e o russo Mihai Grecu, todos com obras de destaque, que não se furtam de comentar questões da ordem do dia em seus respectivos países.

Outro que se sobressai é o português Gabriel Abrantes. Em Liberty, filme projetado na mostra de convidados, o artista ficcionaliza o amor de um rapaz angolano por uma imigrante chinesa, nunca consumado devido à impotência sexual do primeiro. A impossibilidade se amplia como metáfora das frustrações e complexidades inerentes à experiência de um mundo pós-colonial e globalizado, cuja abertura de fronteiras não garante uma revisão definitiva nem fácil das narrativas de alteridade. É preciso repetir insistentemente, como fizeram Nazareth e também Daniel Frota na obra sonora It’s a Perpetual Way, que ecoa no corredor externo do Sesc com um dos versos célebres de Caetano Veloso: “It’s a long way, it’s a long way”. Um loop infinito transforma o caminho, que antes apenas se avistava ao longe, no lugar para se estar. Entre marchas, intempestivos e tentativos, com mais acertos do que erros, assim se apresentam os Panoramas do Sul.

19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil
Até 6 de dezembro
Sesc Pompeia – Rua Clélia, 93 – Pompeia – São Paulo/SP
11 3871-7700
sescsp.org.br/pompeia
Galpão VB – Av. Imperatriz Leopoldina, 1.150 – São Paulo/SP
11 3645-0516
videobrasil.org.br / 19festival.com


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