Dois mil pequenos pedaços circulares de bronze envolvem o elevador da Pinacoteca do Estado de São Paulo, uma intervenção radical no projeto de Paulo Mendes da Rocha denominada Gota a Gota, criação da artista Nazareth Pacheco. Exposta desde março passado, a obra segue em exibição até 18 de outubro.
Em um primeiro momento, a camada brilhante composta pelas gotas de bronze parece um tanto abstrata, até distante das obras mais conhecidas da artista, que costumam ser feitas com objetos cortantes como giletes ou agulhas. Contudo, quando Pacheco revela a referência, a coerência em sua poética ganha evidência: “Elas são inspiradas em gotas de sangue, que passei a observar quando eu mesma criava obras com instrumentos cortantes e vi o sangue espirrar ao me cortar”.
Assim, a artista dá continuidade a uma estratégia em sua carreira, que é a de criar um “envelope formal de limpeza asséptica”, como definiu Aracy Amaral, em 1994, ao tratar de seus trabalhos.
Desde 2007, Pacheco vem usando o sangue como inspiração para algumas criações, seja em fotografias, seja apresentando o próprio sangue em pequenos frascos transparentes, ou mimetizando as gotas em metal prateado.
“Quando apresentei o projeto à Pinacoteca, há quatro anos, fiz duas propostas: uma era ocupar o piso do museu e outra, a área externa do elevador; para evitar problemas de deslocamento do público achamos melhor ocupar o elevador”, explica a artista, em frente à obra, em uma tarde luminosa e seca de fim de inverno.
É a maior intervenção de Pacheco, que costuma fazer trabalhos mais intimistas, condição que mereceu comentários de ninguém menos que Louise Bourgeois (1911-2010). Em 2000, após participar de alguns dos encontros dominicais promovidos pela francesa radicada em Nova York, o “Salon”, Pacheco foi convidada a mostrar algumas obras a Bourgeois e o grupo de artistas que conviviam com ela. Instada a descrever o trabalho antes de realizá-lo, Pacheco contou que seria um objeto relacionado a seu corpo e que teria entre dez e 20 centímetros. “Como você é tímida”, comentou Bourgeois.
“Ela era superativa”, recorda-se Pacheco, com quem Bourgeois teve seu primeiro encontro em 1999, por indicação de Paulo Herkenhoff. Ao ver a artista brasileira, que tem um olho com aparência não comum, Bourgeois foi logo perguntando: “A culpa é do seu pai ou da sua mãe?”, lembra-se, rindo da artista francesa, reconhecida por conceber uma obra de caráter fortemente autobiográfico, em que um dos conceitos centrais é a destruição do pai. Logo depois, ela a convidou para participar de uma exposição em Nova York, em 2001, o Louise Bourgeois Salon, no badalado Artists Space.
A relação das duas foi tematizada em uma de suas séries mais recentes, de 2012, exposta até dezembro na nova sede do Museu de Arte Contemporânea da USP, no Ibirapuera, na mostra coletiva de 30 artistas selecionados para a quinta edição do prêmio Marcantonio Vilaça. Lá, ela exibe cinco camisolas infantis brancas bordadas em vermelho com frases de Bourgeois, como “Para mim, a escultura é o corpo. Meu corpo é minha escultura” ou “Minha infância nunca perdeu sua magia”, além de outras obras inspiradas no sangue.
Assim como os vestidos com giletes ou outros trabalhos com materiais cortantes, como a cortina de banheiro exposta atualmente na OCA, os bordados também são realizados pela própria artista.
Em Pacheco, o caráter biográfico já esteve presente de forma direta nos anos 1990, particularmente na mostra individual que ela apresentou no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, em 1993, O Corpo como Destino. Lá, além de obras pretas em borracha vulcanizada, que ela já vinha mostrando havia alguns anos, ela exibiu em caixas documentos sobre as 16 cirurgias pelas quais passou até os 18 anos, divididos em dois grupos: as cirurgias de reparação de um problema congênito para correção do lábio leporino, de transplante de córnea, operações nas mãos, nos pés, no nariz e na boca; e outro grupo, registro de tratamentos chamados “de beleza”, como procedimento na pele do rosto, aparelho nos dentes, depilação e limpeza de pele, entre outros.
O problema congênito foi a síndrome da banda amniótica, uma patologia rara e altamente fatal, que danifica partes do feto com anéis fibrosos. Filha de médico, contudo, Pacheco já tinha vida normal, após ter passado por todas as operações necessárias. “Aos 18 anos eu já estava levando chibatada para tocar minha vida”, brinca.
A abordagem de uma questão tão íntima coincide ainda com a obra de Leonilson, com o qual Pacheco esteve próxima, quando da participação dele na 18ª Bienal de São Paulo, em 1985. Ela foi do grupo de monitores da exposição, na época coordenado por Tadeu Chiarelli, Ivo Mesquita e Stella Teixeira de Barros. “Cada monitor devia ajudar na montagem dos trabalhos de dois artistas e eu fiquei encarregada de Alex Vallauri e de Leonilson, com quem me identifiquei muito”, afirma. Quatro anos depois, Leonilson morreu em decorrência da Aids, questão tratada pelo artista em muitas de suas obras nos anos finais de sua carreira, na qual foi abordada também sua homossexualidade de forma recorrente.
Contudo, diferentemente de Bourgeois ou Leonilson, Pacheco não seguiu tratando de questões autobiográficas, apesar de muitos críticos e curadores apontarem em seus trabalhos com agulhas, giletes e outros elementos cortantes uma reverberação de suas operações. Ela não concorda: “Minha obra não é reflexo de minha pessoa, nem é referência direta a meu corpo, a não ser a mostra em 1993. Desde então, eu falo mais da violência a que o corpo contemporâneo é submetido”.
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