A ideia da exposição, que é tema deste texto, teria surgido por iniciativa de artistas plásticos locais ou vivendo no Brasil, um grupo de pintores que, cada um à sua maneira, tentava se libertar de influências acadêmicas importadas para forjar uma identidade cultural brasileira e desejava se fazer conhecer no exterior. Estávamos em 1944, no Rio de Janeiro, capital da República, e a proposta foi rapidamente abraçada pelo então ministro das Relações Exteriores de Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, preocupado em posicionar o Brasil no mundo no Pós-Guerra.
Rolava, embora já caminhando para seu término, a Segunda Guerra Mundial. E o ministro brasileiro, que tinha garantido junto a Vargas que a posição política do Brasil fosse pró-Aliados e claramente contra o Eixo, fazia questão que soldados do exército brasileiro se dirigissem para a Europa de modo a marcar posição, fazendo parte da luta contra os alemães. Não tínhamos o apoio dos britânicos, menos receptivos à nossa participação, que achavam desnecessária, mas sim dos Estados Unidos, em lua de mel com o Brasil desde que lhes concedemos a base de Natal, e cada vez ocupando mais espaço na cena mundial. O front das lutas e das perdas humanas era, no entanto, ainda na Europa. E a Inglaterra, como é sabido, exercera papel fundamental na grande vitória aliada que, naquele momento, já se podia prever. Era uma forma também para o Brasil de deixar no passado a questão diplomaticamente delicada da apreensão pela Inglaterra de um navio alemão, em 1941, carregado de armamentos comprados pelo País antes do início da guerra e que se dirigia ao Rio de Janeiro, cuja mercadoria só chegou ao Brasil bem mais tarde devido à intermediação dos Estados Unidos.
Pois a ideia de Oswaldo Aranha, anunciada à imprensa sem preâmbulos, era que, paralelamente ao envio dos pracinhas que seguiriam para a Itália em novembro de 1944, fosse organizada em Londres uma exposição de pintores brasileiros cuja renda seria revertida para a Força Aérea Real Britânica, a RAF, como reconhecimento dos esforços do Reino Unido na guerra. Esse gesto simbólico de apoio moral foi o que fez com que o British Council e a Embaixada Inglesa, desavisados e constrangidos, tivessem de aceitar e se encarregar dos trâmites e dos custos para o envio das obras. Montada a exposição dos 168 quadros primeiramente no Palácio Itamaraty no Rio de Janeiro, as pinturas dos 70 artistas, como Portinari, Lasar Segall, Pancetti, Volpi, Clóvis Graciano, Di Cavalcanti, Cícero Dias, Tarsila do Amaral, Iberê Camargo e Heitor dos Prazeres, entre outros, finalmente seguiram para Londres, onde foram expostas na Royal Academy of Arts, entre 23 de novembro e 13 dezembro de 1944. Em seguida foram para a White Chapel e depois foi feita uma itinerância por sete cidades no Reino Unido, como Manchester, Edimburgo, Glasgow e Norwich. Nessa última, a exposição, que na capital inglesa foi vista por 2.600 pessoas, recebeu nada menos que 14 mil visitantes.
Evento pouco lembrado e conhecido, na verdade uma lacuna da história da arte modernista brasileira, a informação sobre a existência dessa exposição na Inglaterra, em 1944, foi passada ao embaixador do Brasil na Inglaterra Roberto Jaguaribe, em 2013, pelo marchand carioca Afonso Costa. E, a partir de então, o diplomata Hayle Gadelha, adido cultural recém-chegado para servir na embaixada brasileira, começou um trabalho de investigação sobre o tema que se pode chamar de formiguinha ou de arqueológico. Sua ideia é que se transforme em tese no King’s College onde realiza pesquisa de doutorado tentando conectar a mostra de 1944 ao momento por que passavam as relações bilaterais do Brasil à época.
Esse trabalho, espera-se, poderá permitir a remontagem da exposição como deseja o embaixador Jaguaribe, projeto agora retomado pelo atual embaixador Eduardo Santos. Para isso será necessário descobrir os quadros. De 50 deles o adido cultural já sabe o paradeiro, pois estão em coleções particulares ou em pequenos museus das cidades onde foram expostos à época. Já é sabido que 25 telas estão ainda na Inglaterra. E tem-se conhecimento também de que os trabalhos não vendidos integraram a primeira exposição de arte contemporânea na Unesco em 1946, em seguida à criação da entidade, e estão hoje espalhados pelo mundo, o que faz com que se preveja um árduo trabalho pela frente.
Por meio do diplomata cujo propósito principal é reconstituir a exibição original, ficamos sabendo que o catálogo da exposição tem textos introdutórios do paraibano Rubens Navarro e de Sacheverell Sitwell, figura polêmica do boêmio e famoso Bloomsbury Group, no qual não tece elogios, mas sim destila preconceitos em relação aos pintores brasileiros. Também ficamos sabendo que para expor na Royal Academy of Arts, nada afeita a “ ismos” como o nosso modernismo, foi preciso que o então chanceler, depois lendário primeiro-ministro britânico, Anthony Eden, telefonasse pessoalmente para o diretor da tradicional instituição inglesa, adepta do classicismo e dos pré-rafaelitas, para que cedesse o espaço, o que só aconteceu desde que ficasse bem claro que a escolha dos quadros não tinha sido feita pelos curadores da Academia de Artes. E ficou evidente, segundo o adido cultural brasileiro, “que havia uma grande distância entre o sentimento brasileiro de pertencer a uma tradição europeia/francesa e a percepção britânica, que não via grande valor artístico nas obras enviadas”.
Apesar de pouco bem-sucedida em matéria de vendas e de crítica, essa exposição pode ser considerada como a primeira fincada de pé de artistas brasileiros no exterior. E, como diz ainda o diplomata, “a partir de então o Brasil e sua arte alcançaram outro patamar de reconhecimento nessas terras”. Terras, a propósito, bem conturbadas naquele final de guerra, uma das razões da dificuldade de se encontrar espaços e disposição para exposições.
Portinari, com dois quadros, já de algum modo conhecido nos Estados Unidos, com quem mantínhamos a famosa política de boa vizinhança, conhecida como good neighbour policy, e Lasar Segall, porque seria centro-europeu, foram dos poucos que receberam algum elogio da crítica, sobretudo em Edimburgo. Segall participou com a pintura Lucy com Flor, um dos vários retratos que fez da jovem pintora Lucy Citti Ferreira. Em um registro de 1959, atrás de uma fotografia do quadro citado, há a informação de que um trabalho dessa mesma série estaria no Jeu de Paume em Paris e outro na coleção de um certo Dr. K. Arnold em São Paulo. Também participaram da exposição a famosa artista portuguesa Maria Helena Vieira da Silva e seu marido, Árpád Szenes, que viviam no Brasil. Um dos dois Portinari expostos foi adquirido pelo diplomata Hugo Gouthier por 180 libras. Conhecido colecionador e embaixador em Roma uma década depois, fez à época questão de escrever uma carta a Portinari contando que a exposição estava tendo muito sucesso e explicando que comprara o quadro “inserto na página 1 do catálogo” pois o achara admirável e “também para evitar que qualquer pessoa o comprasse deixando-o segregado num quarto de apartamento”. Um documento que faz parte das fascinantes descobertas do adido cultural.
Muitas das telas, como as de Tarsila e Iberê, não encontraram comprador e basta dizer que um Guignard foi vendido por nove libras, um Cícero Dias por três libras e uma Djanira, por duas. Apesar dos preconceitos, foram descobertas fotos do evento em que se pode ver grande quantidade de gente ocupando os salões da mostra. Inclusive aquela em que a duquesa de Kent faz um tour acompanhada pelo então embaixador Sousa Leão. E há registro também de que a rainha Elizabeth, mãe da atual soberana, visitou a mostra acompanhada de uma então bem jovem princesa Margareth.
Talvez como antecipação do que viria a ser futuramente um real e verdadeiro reconhecimento da qualidade de nossa arquitetura, fez parte da exposição um conjunto de 162 fotografias de arquitetura brasileira, antes exibidas com sucesso no MoMA de Nova York e que foram levadas à Inglaterra pela Anglo-Brazilian Society. Incrivelmente, e apesar da falta de maquetes, as fotos tiveram muito melhor acolhida de público e crítica do que as telas. Muito provavelmente, segundo ainda o adido cultural, “por terem sido avalizadas previamente pelos norte-americanos”. Ali se podia ver desde a nossa arquitetura colonial até a arquitetura moderna de Lúcio Costa com o Palácio Capanema, então Ministério da Cultura.
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