Subverter o monumento

Vista geral da exposição na Galeria Leme. Foto: Filipe Berndt
Vista geral da exposição na Galeria Leme. Foto: Filipe Berndt


Ao sair da mostra
Totemonumento, na Galeria Leme, me veio à cabeça um provérbio nigeriano: “Enquanto os leões não tiverem seus próprios historiadores, as histórias de caça sempre glorificarão o caçador”. A coletiva de sete artistas, reunidos pela jovem curadora Isabella Rejeille, se mostrou heterogênea, mas coesa no propósito de confrontar história, estórias, memórias, mídias, fatos políticos… Os artistas foram tocados pela inquietação social e provocados a se manifestarem.

Toda obra que lida com história potencializa releituras e diferentes ecos. Totemonumento não fugiu à regra. A contrassenha usada foi a memória. Cildo Meireles, o mais consagrado e experiente do grupo, contribui com imagem da performance Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político, protagonizada por ele na mostra Do Corpo à Terra, em 1970. A ação se deu no furor das convulsões sociais e políticas durante a ditadura militar no Brasil. Cildo ateou fogo em dez galinhas vivas, amarradas pelos pés em um pedaço de madeira. A obra fotográfica é o resíduo da tortura: cinzas, penas, ossos. O ato era direcionado aos militares que barbarizavam os presos políticos em paus de arara, mas, convenhamos, antes de os artistas partirem para novas atitudes, eles deveriam abandonar as antigas e redescobrir alguns princípios humanos básicos. Cildo já confessou que não faria isso hoje e mesmo que quisesse a sociedade não permitiria.

Os demais artistas da coletiva buscam uma forma de compreender e recuperar a memória, reinterpretando episódios políticos, históricos, sociais nos quais tudo aparece com um elo de continuidade de fatos do momento: migração forçada, violência, caos social.  Nessa ordem de ideias, Raphael Escobar deu voz a um sobrevivente do massacre do Carandiru, episódio que em 1992 causou a morte de 111 detentos, no então maior presídio da América Latina, hoje transformado em espaço público. O prisioneiro comenta a barbárie na videoinstalação Furo, e sua fala se cruza ao noticiário da época. Rafael trabalha o fictício e o real e desmascara o poder do Estado. Na parte interna da galeria, um orifício perfurou a sala de exposição e atingiu a fachada, levando o som à calçada, fazendo brotar no espaço urbano uma geografia viva que dava pistas do que ocorria lá dentro. O transeunte se viu envolvido em uma história que tentaram silenciar, mas que sobrevive e circula também pela oralidade.

"Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político" (1970), do artista Cildo Meireles, trabalho que inspirou o nome da mostra. Foto: Divulgação
“Totemmonumento ao Preso Político” (1970), do artista Cildo Meireles, trabalho que inspirou o nome da mostra. Foto: Divulgação

A contemporaneidade sempre deu lugar à experimentação e, como afirmou Duchamp, “é o observador quem faz a obra”.  Em Contextualizable, José Carlos Martinat compreendeu a história e a memória como lugares de disputa, moldáveis de acordo com o tempo e possíveis de serem alterados, como em sua coluna Antimonumento, que o visitante pode alterar como quiser.

A curadora Isabella Rejeille orquestrou construções narrativas, jogos de poder, representações e questionamento sobre o papel do monumento na construção de uma história oficial. Uma das peças curiosas do conjunto reproduziu com esmero o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, um exemplar da alma colonizadora dos portugueses. Em dimensão reduzida, Jaime Lauriano fundiu a escultura com cartuchos de munições utilizadas pela Polícia Militar. Mais sutil, a jovem artista Clara Ianni nos mostrou, mais uma vez, sua coragem e persistência ao refazer fraturas humanas e ao resgatar narrativas por meio de ossos. Seu ponto de partida foi um manual de antropologia forense sobre crimes praticados pelo Estado brasileiro. Os frágeis desenhos recuperam traumatismos sofridos e para cada lesão catalogada a artista receitou intervenções gráficas restauradoras.         

A crise dos Estados Nações foi contemplada no trabalho de Regina Parra, que sinalizou, entre outras questões, o deslocamento forçado de imigrantes e os problemas de fronteiras. Erica Ferrari preferiu mergulhar no avesso de um monumento equestre feito de entulho de demolições e sustentado por um pedaço de madeira. O discurso toca na constante fabricação de heróis e no monumento como paliativo para minimizar a violência de fatos históricos. Questionar monumentos inspirou Frederico Filippi, que usurpou um fragmento do Descobrimento das Américas, instalado em Madri, e o fundiu em uma placa, instalando-o de volta junto ao monumento. O ato foi contra o genocídio praticado pelos europeus contra os povos indígenas em sua chegada à América. Se pensarmos no momento de superficialidades generalizadas em que vivemos, Totemonumento dignificou, do começo ao fim, a busca pelo verdadeiro.

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