“Uma obra não fica tão somente porque reflete a sensibilidade de seu momento histórico. Mas fica ainda menos se não a reflete”, escreveu certa vez Sérgio Milliet, o primeiro crítico de arte moderna brasileira e também o primeiro grande intérprete de Tarsila do Amaral. A frase serve perfeitamente para a artista, que refletiu (tanto no sentido do espelhamento, quanto no sentido do pensamento) o seu tempo, o primeiro modernismo brasileiro, em sua busca de uma forma moderna e original – com todas as suas conquistas e ambiguidades.
Na obra de Tarsila, parte dela agora exposta na Casa Fiat de Cultura, em Minas, especialmente em seus desenhos se define uma das marcas visíveis da abstração própria ao modernismo brasileiro: uma adaptação da linguagem vanguardista a um quê de naturalismo e primitivismo afetadamente local. É daí que se constrói o vocabulário “pau-brasil” e a arte “antropófaga”, com suas linhas largas e sinuosas inspiradas no movimento da natureza brasileira e nas formas populares que, como o traço arquitetônico de Niemeyer, será o que melhor representa uma certa visualidade brasileira moderna (como se pode ver no belo quadro >i
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Essa arte generosa e arrojada é tão ambígua quanto o próprio processo modernizador do Brasil. Se há integralmente uma arte que remete à memória da infância e à sua liberdade de imaginação, há também um sentimento arraigado do mundo agrário e pré-industrial, próprio a uma elite que via seu mundo desaparecer, mas ainda assim seu poder se perpetuar.
É na força dessas contradições, em seu reconhecimento explícito ou inconsciente, que reside a grandeza do modernismo brasileiro e da obra de Tarsila em particular, essa mulher que foi tudo: aristocrata latifundiária, rentista, coquete parisiense, aluna aplicada de Léger, comunista, escandalosa companheira de Oswald de Andrade, esposa de um homem muito mais jovem do que ela, cronista delicada etc.
Acredito que a tela A Negra (1923) seja seu trabalho mais emblemático, certamente um dos pontos altos do primeiro modernismo. Trata-se do mais antiacadêmico de seus quadros, pois, pela primeira vez, se confronta a forma imperial da pintura acadêmica em sua representação conivente com a escravidão. A negra que está no quadro é, antes, um imenso campo monocromático, uma potência feminina sedutora, maternal e ao mesmo tempo inerte e passiva, posta à frente de um fundo geométrico que ela ignora. Uma simultaneidade, porém apresentada em dois planos.
O peso simbólico e a presença do olhar da negra escrava, de pés acolhidos pelo chão da terra – que nos vê e nos revela ao revelar-se – se replica na mais famosa e polêmica tela de Tarsila, o Abaporu (1928), na qual o fundo geométrico desaparece, dando lugar a um colorido quente e muito particular, que será ainda mais forte em Sol Poente (tela de 1929, para a qual cabe perfeitamente a definição de Drummond: “o amarelo vivo, o rosa violáceo, o azul pureza, o verde cantante”). Em Antropofagia (1929) tudo isso se reúne: o seio desnudo da negra e os pés fortemente ligados à terra do ser brasileiro de cabeça pequena – mas iluminado pelo sol e por cores cantantes – se entrecruzam na figura síntese do otimismo nacionalista e crítico do primeiro modernismo.
Apenas essas invenções bastariam para se entender Tarsila como uma força significante de nossas utopias mais generosas e também de nossos horrores atávicos. Talvez por isso suas obras se perpetuem como referências para o presente.
No final dos anos 1990, Carmela Gross elaborou uma espécie de escultura ou instalação que chamou também de A Negra. Composta por camadas de véus pretos, instalada sobre rodas, essa figura gigante e sem rosto foi colocada para andar, como o negativo de um fantasma de histórias infantis, pela avenida Paulista – o berço dos antigos palacetes dos ricos do império e atual passarela do império do capital.
Mais recentemente, quando a primeira mulher (branca) foi eleita presidente do Brasil, o artista Gustavo Rosa resolveu colocar o rosto da presidente em uma réplica do Abaporu. Tarsila ainda vive no nosso tempo, para o bem e para o mal.
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