Abaixo, reproduzimos alguns trechos da conversa entre a artista e o curador Pablo León de La Barra:
PABLO LÉON DE LA BARRA – Cibelle, eu te conheci cerca de 12 anos atrás, quando nós dois estávamos vivendo em Londres. Você já era (e ainda é) uma performer e cantora de sucesso. O que fez você decidir expandir sua prática para as artes visuais?
CIBELLE CAVALLI BASTOS
Eu não sou cantora, embora cante.
Eu não sou pintora, embora pinte.
Eu não sou escultora, embora esculpa, e assim vai…
Quando meu primeiro álbum saiu, ninguém sabia como chamá-lo, que tipo de “música” era. Em seguida, veio o segundo e a mesma resposta. Para não mencionar a estereotipação devido a ser brasileira e habitar um corpo feminino, o que tornava ainda mais difícil de ser compreendida como alguém que tem agência . Nessa época, eu já tinha percebido que havia espaço para mim no mundo onde eu me sentia mais à vontade, onde as pessoas podiam se relacionar melhor com a minha conversa. Era hora de me assumir e sair do armário no mundo da arte. Eu não convivia e não convivo com muitos músicos, meu círculo de convivência é feito de artistas e pensadores, principalmente, pois essas são as pessoas com quem consigo me relacionar mais plenamente. Tentei deixar a gravadora na qual eu estava, mas não pude. Eu estava em um contrato longo, de quatro álbuns, então decidi ir mais longe com a indústria da música e parasitá-la completamente, usando isso como mídia para minha arte.
Então foi por isso que você criou Sonja Khalecallon? Uma espécie de alter ego que existe entre a arte, a performance e a música, e onde palco, figurinos e adereços tornam-se obras de arte?
Criei Sonja Khalecallon como um nome para assinar trabalhos e fazer performance, e cantar o meu “disco”. Foi assim que Las Venus Resort Palace Hotel nasceu e continua em andamento. Ele é uma instalação de som portátil, mixada para situar o público num ambiente de hotel e “assistir” à performance de Sonja. Este é um trabalho gigante, porque, além da performance e instalação em si, ele parasita a imprensa para “vender os produtos de Sonja Khalecallon para uma vida melhor”. Eu saí em turnê com ele, me apresentei em espaços “oficiais” de arte, inclusive parasitando a instalação Clocktower, do artista Hrafnhildur Arnadottir (também conhecido como Shoplifter), na Art Basel Miami, com uma performance de cinco dias, e mais recentemente no Pivô, em São Paulo. Acho que falar sobre isso pode explicar um pouco mais como relaciono esses aspectos de música, performance e arte. Eu faço uso de tudo o que puder. Basicamente, vejo a vida em sua totalidade como o campo onde meu trabalho se desenrola. Da mesma forma que as pessoas não sabiam como chamar a minha música, muitas vezes eu ouço as pessoas dizerem que não sabem como chamar a minha prática artística. Sei que tudo o que faço tem um aspectonão binário. É sempre algo que não é nem isso nem aquilo. Mais recentemente, percebi que isso também se aplica à minha sexualidade, já que eu sou uma pessoa não binária, independentemente de como eu possa me apresentar.
Você falou sobre ser não binária. Você pode me dizer sobre o seu repensar a sexualidade e como as obras e a exposição se relacionam com essa ideia?
A exposição começa com uma peça em neon que diz “thou art”, que em inglês significa “tu és”, e funciona como um lembrete para ser quem você é. Sou feminista, queer, trans, não binárix*. Nós temos de lembrar que por debaixo da pele, da performance de gênero, antes da genitália, da orientação sexual, de trajetórias, da classe social, nós somos todxs seres que sentem, vivem, sofrem. O que o feminismo quer é a igualdade e respeito entre “os sexos”, entre as pessoas, enfim, com o foco na questão do feminino e do corpo fêmeo sem deixar de lado a intersecção com a raça, a classe, a orientação sexual e a identidade de gênero. Eu pessoalmente busco e estudo e maneiras de conseguir enxergar todos os automatismos que se manifestam nos machismos, racismos, homofobias, transfobias, classismos e preconceitos, seja lá quais forem, no nosso dia a dia e que habitam em todxs nós. Todxs somos passíveis de cometer atos misóginos, machistas, racistas, classistas, homofóbicos, transfóbicos contra nós mesmxs e contra x próximo. Esse machismo mora tanto nas palavras que utilizamos quanto nos nossos atos. Por isso bato na tecla do silêncio interior, da busca interna das raízes dos nossos conceitos e pensamentos. Estamos todxs coletivamente trabalhando em diversos aspectos para que tenhamos paz e que a divisão e a desigualdade acabem. Para tal, o empoderamento de toda a classe oprimida é necessário. Cada um de nós, habitando os nossos corpos políticos, cuida do assunto o qual se tornou mais consciente, e essa pluralidade de linguagens e approaches é belíssima e necessária.
Eu, por exemplo, no momento, ando muito incomodadx com a invisibilidade do homem trans, por exemplo, e com a ausência de pessoas não binárixs com buceta na discussão queer. Quando se discute o trans, sempre vem à mente e à mídia a mulher trans. Raramente se fala ou se vê o homem trans. Isso tem de ser trabalhado. Dentro do kuir (queer), o que mais vejo nessa discussão são pessoas trans, ou cis, que nasceram em corpos machos. Não se vê a xana por aí. No meu entendimento feminista e no meu ativismo queer, luto pelo respeito e visibilidade da vulva, da vagina, do sangue menstrual, como coisas normais, belas, aceitas. Estou pelo respeito à xana, seja ela de nascença, feita, ou sentida apenas na identidade. Pelo respeito ao feminino que é tão demonizado, levando a agressões a qualquer pessoa que o apresente em seus corpos ou que tenha relação com qualquer coisa entendida como pertencendo ao universo do feminino, como os gays, afeminados ou não, mulheres trans, homens trans, pessoas não binárias de apresentação femme em corpos fêmeos ou machos – por falta de melhores palavras, principalmente mulheres cis e trans, que têm seus corpos policiados e oprimidos diariamente. Claramente estou pela aceitação e respeito de tudo que não é binário nem normativo. Digo tudo isso ciente do privilégio que tenho de ter nascido, apesar de descendente de índio e nordestino, de pele pálida numa terra onde quem tem um pouco mais de melanina* na pele sofre infinitamente muito mais do que eu, e de minha parte, tendo isso consciente, levando em conta também o léxico falho e em construção que possuímos, faço de tudo o que posso para colaborar com a transformação desta situação opressora em que vivemos, e para empoderar todxs aqueles que vivem em corpos oprimidos. Continuemos trabalhando.
*ERRATA: na versão impressa da revista aparece, por engano, a palavra “melatonina” em vez de melanina.
Assista abaixo o vídeo que faz parte da exposição:
Deixe um comentário