O americano Robert Rauschenberg (1925-2008), ícone da arte pop americana cuja obra foi relembrada em mostra recente na Tate Modern, em Londres, cultivou durante toda a sua trajetória um hábito singular: o de procurar objetos na rua e incorporá-los a uma obra.
Essa história é contada no texto de apresentação da mostra, que acabou em abril. Em seu trânsito entre o abstrato e a figuração, o pop e a arte conceitual, Rauschenberg enxergou potência em objetos que, encontrados a partir de um olhar randômico, continham traços de histórias perdidas ou lapidadas pelo tempo.
Um bom exemplo é a série Gluts (do inglês, “excessos”), iniciada em 1986. Rauschenberg estava visitando sua terra natal, o Texas, que passava por uma recessão causada por uma desvalorização no mercado de combustíveis: o excesso de estoque provocara a queda dos preços da mercadoria. O artista começou a coletar placas usadas por postos de gasolina e outras peças sucateadas de metal ligadas à indústria automotiva, transformando-as em esculturas. Conforme atestou, queria, assim, “mostrar às pessoas sua própria ruína”.
Foi a obra de Rauschenberg e mais particularmente esse estranho e belo hábito seu que inspiraram o texto que segue, bem como a reunião de imagens nas próximas páginas.
Emmanuel Nassar, Amanda Mei, Marcelo Moscheta e Paulo Nazareth são alguns artistas que trazem consigo hábitos similares explicados por razões diversas: Moscheta descreve a origem de seu processo como um exercício de solitude, Nassar fala na estética do descarte, Nazareth traz para debate um estado meditativo resultante de suas extensas caminhadas.
Não é preciso olhar com muita atenção para identificar o desgaste na superfície de algumas peças ou a forma que adquiriram pelo uso e pelas marcas deixadas pelo tempo, a oxidação natural dos metais, as madeiras que antes de apodrecer enrugaram, as ranhuras nos minerais.
PEDRAS
Autor: Marcelo Moscheta
Obra: Parallel 45 N
Ano: 2015
Neste trabalho, Moscheta juntou pedras recolhidas na fronteira dos EUA com o Canadá. É um velho hábito. Em 2011, em obra agora exibida no Museu de Arte Contemporânea de Campinas, ele produziu a partir de pedras recolhidas na fronteira do Brasil om o Uruguai. Ele conta que fez o percurso com um carro, durante 15 dias, e o critério da escolha de uma pedra era simples: “Eu pegava aquela que me chamava a atenção”, diz. A massa dos minerais também tinha de ser entre 20 e 40 quilos, quantia que ele conseguia carregar sozinho para colocar no veículo. Para Moscheta, a atividade de recolher pedras, “caminhando ou dirigindo”, tem a ver com um sentimento “de solitude”, que se reflete na formação da obra, sem que haja uma leitura direta sobre a metodologia. Mas as histórias estão ali de alguma forma. Uma das pedras, por exemplo, escondia uma cascavel. “Quase fui picado”, conta. Outra pedra pertencia a um muro que desabou. “Essa pedra carrega uma segunda camada da simbologia da delimitação de uma fronteira”, conta Moscheta.
SUCATA E FIAÇÃO ELÉTRICA
Autor: Emmanuel Nassar
Obra: Traptic
Ano: 201
Obra do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, intitulada Traptic (2013). É uma pintura sobre chapa, madeiras, peneira e restos de fiação elétrica, com 60 x 150 cm. A obra contém uma chapa em fundo azul, recolhida em uma sucataria de Belém. “Intervi no detalhe do E e do 15 pintados”, diz o artista. A madeira de resto de moldura de porta foi recolhida em uma caçamba de rua em São Paulo, assim como a pequena peça de madeira em detalhes pretos e brancos e a peça de madeira com recortes e encaixes, ele conta. “A peneira foi adquirida de um vendedor de farinha de tapioca numa feira em Belém; o resto de fiação elétrica com bocais de louça veio da sucataria em Belém; e o quadrado branco é uma tela adquirida em papelaria.” O artista se descreve como alguém que “é de juntar coisas e ficar buscando um sentido, um significado, uma unidade”. “Talvez seja um jogo em que me viciei. Um jogo em que o objetivo nunca é totalmente alcançado. Peças de quebra-cabeças com níveis de dificuldade sempre crescentes. Isso não se restringe apenas à pintura. Tinta ou objetos são carregados de energia própria. Minha paixão é fazer essas conexões, dar luz ao que parece ter sido descartado, desprezado ou deixado fora de contexto. Lembrando sempre quem nos precedeu nessas práticas. Marcel Duchamp, por exemplo”, analisa.
SAQUINHOS DE PIPOCA
Autor: Paulo Nazareth
Nome da obra: Pipoca Aritana e Beni, da série Produtos do Genocídio
Ano: 2017
Nazareth vê suas caminhadas como uma atividade meditativa. Ele diz ser um trecheiro e explica que os trecheiros são pessoas que andam grandes distâncias. Quando anda, muitas vezes, leva uma sacola consigo para guardar coisas que encontra no caminho. Nascido em Governador Valadares, Nazareth tem ascendentes da tribo indígena Borum, diz que caminhar está nos seus genes e na memória que carrega de antepassados. “Minha mãe trabalhava varrendo a rua e trazia brinquedos que encontrava para mim e meus irmãos. Se o brinquedo estava quebrado, eu ficava remontando, tentando consertar”, conta Nazareth. Em andanças pela África, o artista fez uma coleção de rótulos de água. Durante uma travessia da Bahia para Alagoas, às margens do rio São Francisco, o artista coletou um saco de pipoca Beni (o branco), que colocou ao lado de um saco de pipoca Aritana (vermelho), comprado para a realização do trabalho, hoje exposto na galeria Mendes Wood, em São Paulo.
PORTAS E JANELAS
Autor: Amanda Mei
Obra: pertencente à série r, r e r
Ano: 2014
Recolher coisas na rua já era uma prática recorrente no trabalho de Mei, que abre a exposição Acordos, Desvios ou Diálogos – no dia 27 de maio, no espaço da Funarte. Em uma das obras ela utiliza madeiras recolhidas nas ruas do bairro dos Campos Elíseos, próximas ao Minhocão. A artista conta que, nesse trabalho, a aparência do material resultante de sua exposição ao tempo é revertida a partir de aplicação de tinta acrílica. “Agora, estou apagando histórias”, conta a artista, embora admita que haverá pistas de um passado mal contado, principalmente nas fichas técnicas. A foto ao lado é de uma série mais antiga, a r, r e r, que contém obra feita com janelas e portas coletadas da rua. “Fui fazendo uma coleção”, diz Mei. Parte dos objetos foi encontrada no entorno no CCBB, onde a exposição foi realizada. As sombras na parede também simbolizam o passado. Para Mei, trabalhar com materiais recolhidos na rua tem refletido um fenômeno urbano em São Paulo, “cidade onde a construção e a desconstrução são parte da nossa vida”. A oferta de materiais na rua é algo notável, ela conclui. Todas as portas e janelas que a artista usou em r, r e r voltaram para uma caçamba.
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