Karl Marx (1818-1883) está participando da 56a Bienal de Veneza, de forma destacada, constituindo um dos três eixos da curadoria de Okwui Enwezor, que retomou o legado teórico formulado pelo alemão no livro O Capital (1a edição em 1867), para dar sustentabilidade aos outros eixos situados em torno da desordem do mundo e da vitalidade necessária para enfrentar tantos problemas sociais. Além do mais, o curador demonstra coragem ao propor um enfoque marxista quando a teoria estrutural francesa é hegemônica no Ocidente. A participação de Marx é merecida na Bienal, ao se considerar dois aspectos que justificam o debate e a retomada de sua análise crítica do capitalismo.
A primeira constatação que aproxima Karl Marx de uma exposição de arte decorre do fato de esse autor ter se preocupado de forma significativa em pensar e situar a arte na sociedade, estudando vários movimentos artísticos, pintores, escritores e dramaturgos dos mais relevantes da história da arte ocidental. Deixou grande contribuição para a área da estética, demonstrando seu envolvimento com a arte – com sua potencialidade e com os riscos que ela corre sob a sociedade capitalista. Assim, de um lado, em uma carta dirigida a Engels, afirma que um romance vale mais do que vários tratados de economia. Por outro, em O Capital, preocupa-se com o fato de que, em uma sociedade dominada pela produção capitalista, até o produtor não capitalista é dominado por concepções capitalistas.
E não é demais afirmar que Marx tinha uma veia artística – suas obras foram redigidas com apurada dimensão literária que se destaca imediatamente, bem como nas inúmeras cartas que escreveu a interlocutores. Impossível não perceber a beleza que atravessa seus escritos. Um filósofo atento às regras próprias da arte, que se percebe quando afirma, nos Manuscritos Econômico-filosóficos, de 1844: “O homem cria a beleza também de acordo com as leis da beleza”. Pode-se até aproximá-lo dos românticos alemães preocupados com a educação estética, mas frisando a efetiva relação dessa questão com a história: “A educação dos sentidos é o trabalho de todas as gerações passadas”, conforme escreveu nos referidos Manuscritos.
O segundo motivo que justifica a inclusão de Karl Marx na Bienal de Veneza refere-se à concepção da curadoria, que se propõe problematizar a atual situação histórica da Europa e investigar as mazelas existentes nas relações entre Europa, África e Oriente Médio. Se Karl Marx é um filósofo e ativista político com alma de artista, a Bienal de Veneza de Enwezor é um acontecimento artístico com alma política. A arte contemporânea se caracteriza por uma estética em permanente busca da politização e, por sua vez, a política e os movimentos sociais que eclodem nas ruas estão ansiosamente em busca de uma estética. Percebem-se claramente esses movimentos pendulares entre o político e o estético, tanto nos movimentos sociais de massa que eclodem nas ruas das grandes cidades quanto nas curadorias e nos artistas das bienais hoje existentes.
A relação entre política e arte pode se tornar uma armadilha perigosa, difícil de escapar, mas Enwezor – por gostar muito de arte, e isso transparece em sua curadoria –, com a ajuda de Karl Marx, produziu uma exposição na qual um desequilíbrio positivo tende para a arte, fazendo emergir todo o seu potencial ético, estético e vital. Por tal postura, a Bienal de Veneza consegue obter um resultado vibrante, assumindo uma atitude crítica face à sociedade ocidental da atualidade. Daí a centralidade de O Capital, a mais relevante obra de análise e crítica radical do capitalismo e da sociedade gerada por esse modo de produção. Embora escrita para interpretar a civilização industrial moderna, sua perspectiva econômica e filosófica torna o livro um ente vivente, possível de se atualizar constantemente e um disseminador da ideia da transformação social.
Durante todo o período da Bienal, serão lidos trechos de O Capital por duas pessoas, em inglês, em determinados momentos do dia. Trata-se da proposta/obra de Isaac Julien situada na Arena, palco principal do Pavilhão Central, nos Giardini. Nos primeiros dias do mês de junho, a leitura já se encontrava no volume 2, com as passagens sobre o processo pelo qual o capital se torna commodity, referindo-se ainda à dimensão financeira. Dois dias depois, ouvia-se sobre como o capital afeta as relações entre as nações, indicando o impacto do capital internacional nas políticas dos Estados. Em apenas duas sessões de leituras, de 30 minutos cada uma, Marx deixa explicitada a sua atualidade para debater os grandes problemas dos dias de hoje: os fortes interesses do capitalismo em países europeus e as relações desiguais entre países do continente europeu e do africano, exacerbando os fluxos migratórios que atravessam o mediterrâneo e criam condições de penúrias para os trabalhadores estrangeiros na Alemanha, França e Inglaterra – fatos que engendram os grandes temas da Bienal de Veneza. Um núcleo forte em torno da performance e do vídeo apresentados por Julien conta com dezenas de artistas que se referem às ideias de Marx e Engels: Alexander Kluge, Thomas Hirschhorn, Samson Kambalu, Rirkrit Tiravanija – e outros. Para Enwenzor, a atual situação do capitalismo gerou um alto grau de desordem, preocupação que pode ser sintetizada na obra de Adrian Piper, que se fixa na seguinte ideia, repetida insistentemente: Everything will be taken away. Ou, também, no prenúncio de The End, de Fabio Mauri, tema levantado décadas atrás.
A postura da retomada da análise crítica presente em O Capital esparrama-se pelos dois espaços da curadoria, sendo notável a atualização do livro também no primeiro segmento do Arsenale, destacando-se Bruce Nauman e Adel Abdessemed, que, juntos, expressam a tensão entre os valores capitalistas escritos em neon nas paredes (guerra, morte, imperialismo…) e os conjuntos de sabres ou facões árabes dispostos no piso do prédio (prontos a serem utilizados). Guerra, a metáfora para conflitos sociais, tensões, contradições – que se exacerbam sob o capitalismo, tanto internamente às nações, quanto nas relações entre países e blocos mundiais. Para Marx, o capitalismo afeta até a vida íntima das pessoas e, assim, um grande momento da Bienal é dado pelo vídeo de Steve McQueen que amplia o peso dos tempos sombrios (colonialismo, racismo e violência) do capitalismo pelas imagens do jovem Ashes assassinado e de seu túmulo sendo construído.
A discussão eurocêntrica da curadoria desloca-se da preocupação com o atual ciclo de crise da Europa, para o seu desdobramento sobre o continente africano. Entretanto, os ecos da curadoria atingem muito bem alguns pavilhões nacionais nos Giardini. As representações de alguns países da América Latina e o da Armênia destacam-se politicamente, mantendo a primazia da dimensão estética. Elas retomam as questões da violência específica das formações históricas periféricas resultantes do capitalismo clássico, focando os aspectos da repressão política e policial e as tragédias da guerra e do genocídio – aspectos que Marx e Friedrich Engels apontaram como possibilidades crescentes no avanço capitalista.
Entretanto, a Bienal de Veneza em si, por capacidade e sensibilidade de Okwui Enwezor, é a prova da possibilidade de resposta às condições geradas pelo capitalismo, pois expressa um dos eixos da curadoria, qual seja, mesmo que haja a tendência em reduzir a arte em sua potência, conforme afirma Marx, ela continua sendo a esfera da vitalidade para viver em condições adversas e, também, se apresenta como uma forma de saber, para enfrentar os tempos difíceis impostos pela história.
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